Edifício Master nos apresenta a 25 moradores de um prédio de apartamentos conjugados em Copacabana. O bairro não aparece em sequer uma imagem de rua, lojas, calçadas ou multidões. Ele está, amiúde, nas alusões dos entrevistados, sob a forma de relatos de assalto, de fobias, comércio sexual etc. Mas Copacabana está, sobretudo, na possibilidade de reunião, num único endereço, de um grupo humano tão diversificado, com histórias e projetos de vida tão heterogêneos. Em qualquer outra área do Rio (exceto, talvez, a Tijuca), Eduardo Coutinho dificilmente desfrutaria de elenco assim variado e cativante sem sair de um mesmo edifício.
Por mais espontâneos que possam parecer, os filmes de Coutinho passam muito longe do culto à espontaneidade. A suprema veracidade que eles passam provém de escolhas muito bem definidas. No processo de edição, essas escolhas são submetidas a uma “naturalização” que determina o tom final e sua infalível comunicação com o espectador. Coutinho afirma, por exemplo, que editou os depoimentos de Edifício Master na ordem mesma em que foram tomados. A única exceção digna de nota teria sido o ex-emigrado que fez de “My Way” a canção da sua vida. Ele foi o último a falar, mas entrou no meio do filme para que sua performance não assumisse o papel de epílogo musical. É claro, porém, que a par dessa fidelidade à cronologia, os trechos escolhidos de cada entrevista sucedem-se de maneira a formar uma curva, se não dramática, pelo menos descritiva do universo do Master.
Assim é que se começa falando do prédio, evolui-se para questões pessoais, chega-se às considerações sociais e volta-se à esfera pessoal antes de terminar. Há um círculo que se abre na imagem da tela do circuito interno de TV, com a chegada da equipe, e se fecha com as janelas do prédio vizinho, filmadas do ponto de vista dos moradores do Master. No início, é explicitado como “nós” os veremos, tendo mesmo a apresentação em off do diretor (“Um edifício em Copacabana...”). No final, vemos o que eles vêem. Entre esses dois extremos da atitude documental, a câmera assume uma posição de interatividade tranqüila. Está sempre postada diante do tronco do entrevistado, sem se perder em detalhes corporais ou deslocamentos dirigidos ao ambiente circundante. A câmera é o substitutivo da presença frontal de Coutinho, atenta basicamente ao rumo da conversa.
Mesmo quando não se ouvem as perguntas, mesmo se não temos aqueles contracampos habituais do repórter de TV para sublinhar a situação de diálogo, temos a sensação permanente da presença do diretor através dessa “humanização” da câmera, que não procura ver mais ou melhor que o olho de um interlocutor de carne e osso (nisso ressalta o entendimento profundo com o cinegrafista Jacques Cheuiche). A câmera-olho impera também nas cenas de intervalo, quando inspeciona os corredores e escadarias do edificio. Numa delas, antológica, um menino obstina-se no resgate de um gato trancado por fora. O plano dura cerca de três minutos, mas encerra a grandeza despojada de um filme de Abbas Kiarostami.
Sutilmente, Edifício Master constrói uma discussão interna sobre o estatuto do documentário em sua permanente fricção com a verdade. Eduardo Coutinho não se cansa de afirmar que a vida, diante da câmera, tem muito de teatro. No recente Fórum Brasil Documenta, ele debateu o assunto com outro mestre do gênero, o americano Albert Maysles, um dos pais do cinema direto. Nada mais distante de Coutinho do que aquela quimera puritana de filmar a “verdade” sem interferir na vida dos personagens. Sua câmera é participante assumida do encontro com os entrevistados. Ela detona um processo que fica a meio caminho entre a verdade e a encenação. Em Edifício Master, a moradora Maria do Céu recorda-se de como se divertia com a bagunça pregressa do prédio para logo em seguida admitir, séria, que “agora melhorou”. Onde está a verdade num depoimento como esse? Alessandra, a garota de programa, traz à baila diretamente a questão da mentira. “Para a gente mentir, tem que acreditar”, diz. Carlos e Maria Regina resolvem contar “a verdade” sobre o seu casamento, explicitando com isso a função deflagradora da câmera.
Enquanto uns se desnudam, emocionados (como Antonio Carlos, o empregado reconhecido), outros se “produzem” para impressionar bem. O que o filme mostra, afinal, são formas distintas de tratar a oportunidade de encarar uma câmera. As comoventes ou engraçadas patologias que se descortinam diante de nós evidenciam não apenas a riqueza humana daquelas pessoas, mas também a capacidade do documentário de, através da mentira, retratar um tipo maior e impuro de realidade.
#EDIFÍCIO MASTER
Brasil, 2002
Direção: EDUARDO COUTINHO
Pesquisa: CONSUELO LINS, CRISTIANA GRUMBACH, DANIEL COUTINHO, ELISKA ALTMAN, GERALDO PEREIRA
Fotografia e câmera: JACQUES CHEUICHE
Direção de produção: BETH FORMAGGINI
Som direto: VALÉRIA FERRO
Montagem: JORDANA BERG
Produção executiva: MAURÍCIO ANDRADE RAMOS E JOÃO MOREIRA SALLES
Duração:110 minutos