Não faz muito tempo, todo mundo recebeu por e-mail, ou acessou no You Tube, ou em algum site de compartilhamento, aquele vídeo que começou em uma coluna no Chicago Tribune, em 1997, e terminou por aqui na voz do Pedro Bial com o título “Use filtro solar”. Em linhas gerais, o narrador começa aconselhando o ouvinte a usar filtro solar, e daí discorre sobre a importância de relevar os pequenos aborrecimentos e aporrinhações de todo dia, e que importante é olhar para as pequenas coisas e pessoas que nos cercam. Mas vamos combinar que, na vida como na camada de ozônio, o buraco é mais fundo, e haja filtro solar pra dar conta de tanto remendo. Fica aqui a sugestão de ir ao cinema e assistir Loki, cinebiografia sobre Arnaldo Baptista, líder d’ Os Mutantes, grupo musical que revolucionou o cenário do rock nacional na década de 1960. “Loki” não usou filtro solar; mas fez das suas queimaduras, e da experiência da dor, matéria-prima de sua arte.
A biografia de Arnaldo Baptista se confunde com a d’Os Mutantes. Ele, o irmão, o guitarrista Sérgio Dias, e a vocalista Rita Lee (na época casada com Arnaldo), não tinham ainda vinte anos quando decidiram juntar voz, talento e ousadia, a guitarras e baixos elétricos, teclado e percussão. Surgiu então um som esquisito, que não era bossa-nova, não era iê-iê-iê, nem MPB. Era algo novo, que cutucava de leve os generais e marechais da ditadura cantando que ando meio desligado/eu nem sinto meus pés no chão, e que alertava os jovens de que as pessoas na sala de jantar estão ocupadas em nascer e morrer. O filme, de Paulo Henrique Fontenelle, mostra os principais momentos do grupo: a participação ao lado de Gilberto Gil no Festival de Música Brasileira de 1967; a projeção do Tropicalismo; a viagem a Londres; e a relação com as drogas, quando a mistura começou a desandar. A partir daí, foi como uma bola de neve: a separação de Rita, a depressão, o fim do grupo, a loucura, a retomada da carreira, a tentantiva de suicídio, o coma, a lenta recuperação.
Fontenelle recupera essa trajetória, optando por uma estrutura linear: a história é tecida entre depoimentos de amigos, parceiros, críticos e registros de arquivo de performances e shows. Se isso parece uma escolha ‘certinha’ demais para a concepção trans d’Os Mutantes, leia-se como uma forma de se aproximar do personagem no presente. Arnaldo hoje vive em Juiz de Fora, encerrado na paz e tranquilidade de seu ateliê de pintura, que foi a forma como encontrou de se relacionar com o mundo e com suas próprias emoções depois do acidente. A tentativa de suicídio em 1982 deixou marcas indeléveis no corpo e na cabeça do compositor. O Arnaldo Baptista de hoje tem, ao mesmo tempo, tudo e nada a ver com o mutante e com o “Loki” que a ele se seguiu. Adotar cores mais psicodélicas em função de sua importância na história da música brasileira seria de um anacronismo insuportável e injusto. O Brasil deve a Arnaldo muito mais que a ousadia d’Os Mutantes. Deve o reconhecimento de um compositor de sensibilidade rara e singular, que não conheceu fronteiras entre o artista e o homem e que, em todos os momentos, apostou em seu trabalho como esperança de redenção. É sobre isto que fala o filme.
LOKI – ARNALDO BATISTA
Brasil, 2008
Direção, roteiro e edição:PAULO HENRIQUE FONTENELLE
Produção:ANDRÉ SADDY e ISABELLA MONTEIRO
Co-produção:CANAL BRASIL
Música:ARNALDO BAPTISTA e MUTANTES
Fotografia:MARCO MOREIRA
Elenco: ARNALDO BAPTISTA, TOM ZÉ, NELSON MOTTA, GILBERTO GIL, SEAN LENNON
Duração:120 minutos