Há certos críticos que cometem o grave equívoco de achar que, ao escreverem um texto sobre filme baseado em fatos históricos, podem entregar logo de cara o destino do personagem, como se todo espectador já o soubesse. Obviamente que boa parte do povo americano deve saber quem foi o gângster John Dillinger, considerado o inimigo público numero 1 nos anos 30. Mas será que as novas gerações o conhecem, e será que mundialmente ele é tão famoso quanto Al Capone? E se o roteiro é estruturado para criar um suspense em relação ao desfecho do filme, revelar o final logo no primeiro parágrafo de uma crítica não seria estragar o prazer do leitor/espectador? Pra ficar no exemplo de Inimigos Públicos, dois dos principais críticos americanos, Roger Ebert, do Chicago Sun Times, e Kenneth Turan, do Los Angeles Times, fazem esse “resumo estraga-prazeres” da biografia de Dillinger no primeiro parágrafo de seus textos.
Sorte deles que o maior atrativo do filme não está no roteiro, que é cheio de lugares-comuns de filmes de gângster. O tratamento é tão convencional, com direito a clichês gastos e batidíssimos (com direito a cena de personagem saindo preso no carro da polícia olhando pelo vidro de trás enquanto veículo se afasta), que chegamos até a pensar que o final do filme pode reservar alguma grande surpresa, diferente daquele para o qual tudo se encaminha. Mas não. Tudo acontece como Ebert e Turan escreveram. E como o espectador deduz com alguns minutos de filme.
Então por que Inimigos Públicos pode ser considerado um dos melhores filmes em cartaz? Porque Michael Mann, seu diretor, conseguiu transformar um roteiro banal em uma obra de arte. Mann pertence ao seleto grupo dos que dirigem tão bem e com tanta personalidade ao mesmo tempo em que respeitam os códigos do cinema clássico hollywoodiano. Basta ver o que ele fez em Miami Vice, por exemplo.
Mas muitos não conseguem ver. Em primeiro lugar, por puro preconceito – “como pode Miami Vice ser um grande filme?”, argumentam. Em segundo lugar, porque não dão a devida importância a ao trabalho de direção. Que pode ser notado a todo instante, mas só por aqueles que realmente queiram enxergar isso. Como Michael Mann não dirige para se exibir, todos os recursos de que ele faz uso podem parecer invisíveis ao espectador interessado apenas no desenrolar da trama.
Em Inimigos Públicos, é possível apreciar a corajosa opção pela captação digital das imagens, coisa rara num filme de época, e que por isso mesmo o torna tão especial, proporcionando uma espécie de contemporaneidade à história. Afinal, de que governo recente você lembra quando falamos de uma América em que a política de segurança do Estado é truculenta, pouco inteligente e ineficaz no combate aos “inimigos públicos”?
Valorize-se, sob a batuta de Mann, o trabalho do diretor de fotografia Dante Spinotti, que trabalha com ele pela quinta vez, e aqui dá outro show. Ver um filme sob o olhar de Spinotti/Mann é ter a garantia da busca de ângulos criativos e inovadores, oferecendo arte sem jamais abrir mão da funcionalidade. E tudo no timing perfeito. Ao mesmo tempo em que o ritmo é ágil, intenso, há momentos de dilatação temporal que favorecem a criação de uma atmosfera de suspense e o mergulho na essência do personagem. Cenas como a do interrogatório da namorada e da sessão de cinema são exemplos perfeitos dessa maestria.
Imagina se além de tudo o roteiro fosse bom…
# INIMIGOS PÚBLICOS (PUBLIC ENEMIES)
Estados Unidos, 2009
Direção: MICHAEL MANN
Roteiro: RONAN BENNETT, MICHAEL MANN e ANN BIDERMAN
Fotografia: DANTE SPINOTTI
Edição: JEFFREY FORD, PAUL RUBELL.
Direção de Arte: PATRICK LUMB, WILLIAM LADD SKINNER
Música: ELLIOT GOLDENTHAL
Elenco: JOHNNY DEPP, CHRSITIAN BALE, MARION COTILLARD, BILLY CRUDUP.
Duração: 140 minutos
Site oficial: http://www.publicenemies.net/