Críticas


PALAVRA E UTOPIA

De: MANOEL DE OLIVEIRA
18.10.2010
Por Carlos Alberto Mattos
O JOHN WOO DAS PALAVRAS

Texto escrito em julho de 2002



O esforço dos críticos no sentido de analisar Palavra e Utopia tem muitas vezes esbarrado numa dicotomia simplificadora. O filme de Manoel de Oliveira seria extraordinário por concentrar-se no texto do Padre Antonio Vieira, enquanto a maré-montante do cinema contemporâneo é no sentido de se privilegiar as imagens. Ou por ser “lento” e caudaloso, quando as palavras de ordem são a velocidade, o corte rápido, a síntese. Isso me leva a propor uma leitura diferente desses pressupostos aparentemente cristalizados.



A imagem do cinema, por mais mimética que possa parecer, não corresponde exatamente ao mundo real. É apenas um ícone que remete – ou representa – a realidade. E não só ela, mas também o mundo das idéias. As imagens são metáforas ou metonímias, tanto quanto as palavras. Ambas, palavras e imagens, referem-se ao mundo, em vez de replicá-lo fielmente. A beleza de um filme como Lavoura Arcaica, por exemplo, está na maneira como texto e imagens se combinam num amálgama indissolúvel, do qual resulta uma eloqüente representação de idéias e emoções. Algo parecido ocorre com Palavra e Utopia.



Os sermões, cartas e reflexões de Vieira são “ações” tão vertiginosas quanto as de um filme de John Woo, só que restritas ao domínio do pensamento. Ouvi-los com interesse, ou melhor, vê-los interpretados por atores tão magistrais como Luís Miguel Cintra e Lima Duarte é uma montanha-russa de emoção intelectual. Basta deixar-se levar pelo arrebatamento do discurso, pela “cenografia” oral do barroco português (além do italiano e do latim), para perceber que este é um dos filmes mais movimentados e velozes dos últimos tempos. E que palavras benditas/bem-ditas podem valer mais que mil imagens banais.



Sabemos que a retórica se presta a convencer ou persuadir uma audiência a respeito de assuntos sobre os quais não existe resposta ou solução inequívoca. Vieira consumiu a vida nessa refrega, condenando a escravidão dos índios numa época (o século 17) em que isso parecia absolutamente natural e enriquecendo com posições corajosas o debate teológico. A defesa da utopia de implantar o céu na terra mediante a evangelização e a minoração do sofrimento alheio o colocou na mira da Inquisição portuguesa e dos potentados colonizadores. Paralelamente, construiu uma obra literária esplendorosa, que levou Fernando Pessoa a chamá-lo de “imperador da língua portuguesa”. O admirável é que Manoel de Oliveira abdique de qualquer retórica cinematográfica para fazer um filme sobre retórica oral. O cineasta não saiu em campo para convencer ninguém, seja de sua própria capacidade autoral, seja da importância de Vieira. Ele trabalhou com o essencial, convencido de que a força da palavra conduziria à utopia de um cinema desintoxicado de retórica.



Oliveira fez questão de filmar em Portugal, na França, Itália e Brasil, nos locais onde Vieira teria de fato pronunciado seus sermões. Não mais que um capricho de ética histórica, já que isso não é ostentado como um valor de produção. Um punhado de gravuras de época e detalhes de fachadas de igrejas bastam para situar o local de cada pregação. Imagens da superfície do mar aludem às travessias do Atlântico. Cenários pintados indicam que o rigor histórico não passa prioritariamente pela imagem (afinal, como ter de volta as paisagens do século 17?), mas pelo texto. Este, sim, é absolutamente fiel aos originais de Vieira e outros documentos. As legendas literais nos ajudam a saborear o barroco português, numa espécie de experiência multimídia: lemos o livro e vemos o filme ao mesmo tempo.



A dimensão imponente da palavra fica ainda mais clara, por contraste, na comovente cena final, da morte de Vieira. Findo o jorro verbal exuberante de Lima Duarte (às vezes mais tonitruante que o necessário, mas ainda assim magnífico), impõe-se o silêncio, apenas cortado pelas badaladas de um sino. A constatação de que “tudo é vento e fumo” ecoa ainda em nossos ouvidos, como se o jesuíta ainda tivesse algo a dizer sobre esse mundo em que vivemos, três séculos depois. Essência e banalidade – talvez seja essa a dicotomia que melhor explique o lugar de Palavra e Utopia na idade do cinema brutalizado.



Veja os textos de Vieira e as intenções de Oliveira no site do filme: www.palavraeutopia.com

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