“Papai, como se escreve ‘biutiful’?” pergunta a doce Ana ao pai, Uxbal, interpretado por Javier Barden. “Da mesma maneira como se fala, mi amore.”, responde ele. Crescer confiante de que as coisas são escritas da mesma forma como são faladas, ou faladas da mesma forma como são escritas, é o preâmbulo de uma vida de decepção e frustração. Teoria e prática, a vida ensina, talvez existam apenas para se contradizer entre si, e apontar que percorremos nossa própria história pisando sobre gelo fino. E quando nos damos conta disso, caímos no espaço indefinido entre a palavra como se escreve, e a palavra como se fala: “Biutiful”, de Alejandro Gonzalez Iñarritu, é a exata medida desse “entre-espaços”, uma espécie de não-lugar escuro e sombrio.
“Biutiful” é o olho do furacão: uma zona cinza, onde não existe espaço para perguntas nem demanda por respostas. Uxbal, que fez justiça ao prêmio de melhor ator no ultimo Festival de Cannes conferido a Javier Barden, é um personagem no limite entre vida e morte. Atravessador do mercado negro, traficante de asiáticos para o mercado da pirataria e, nas horas vagas, médium de ocasião, ele é pai de dois filhos, fruto de um relacionamento completamente instável com Marambra, mulher que divide com outros homens. Entre eles, o irmão, empresário do submundo, e que faz a ponte entre Uxbal e uma quadrilha de asiáticos que emprega seus próprios conterrâneos em um trabalho escravo que envolve bolsas falsificadas e CD’s piratas. Em meio a esse circulo vicioso, em que o tapete é puxado sob os pés a 3 por 2, Uxbal recebe uma notícia que ao mesmo tempo em que cataliza todas as suas experiências, tem o poder de mostrar que... que nada muda.
Uxbal é um personagem em crise do começo ao fim do filme. Em um texto escrito para a edição de novembro da revista American Cinematography, Iñarritu comentou que gosta de filmar as cenas na sequência em que elas acontecem no roteiro. “Não estou interessado em realidade”, escreve ele, “me interessa a verdade do universo que tento retratar”. Ele também diz não gostar de filmar em estúdio; locações, escreve, produzem um incômodo produtivo para o filme, na medida em que ajuda os atores a sentir o próprio território. Talvez isso explique o sensacional desempenho dos atores. O núcleo familiar de Uxbal (a esposa e os dois filhos) é quase perfeito no naturalismo do jogo cênico. A química entre eles, entre todos eles, sem exceção, é algo difícil de conseguir. Mas todos estão em corpo e espírito na mesma cena, sofrendo as mesmas dores e em plena sintonia. As sequências em torno da mesa de jantar, ou as discussões entre Uxbal e Marambra são momentos memoráveis.
No mesmo texto da American Cinematographer, Iñarritu escreveu, fazendo uso de analogias musicais (e música é um ponto forte em todos os seus filmes; aqui com a colaboração impecável de Gustavo Santaolalla), que “Amores Perros é rock’n’roll, 21 Gramas é jazz, Babel é operístico e Biutiful é um réquiem”. A gramática visual do filme, escreveu, precisava ser delicada e sofisticada o bastante para combinar com a pegada “social, física, metafísica e hiper-realista”. Réquiem vem da expressão “requiem aeternam dona eis” (“daí-lhes o repouso eterno”); faz sentido, então, pensar a competente fotografia do filme, do imbativel parceiro dos mesmos projetos anteriores Rodrigo Prieto, como uma aporia ao próprio termo. Um paradoxo que impede que se chegue a alguma conclusão. “Biutiful” é um filme escuro, sombrio, onde a dor e a falta de esperança estão inscritas na imagem; a câmera passa a maior parte do tempo na mão, acompanhando de perto cada ação, e respirando no mesmo ritmo dos personagens. A cena do “rapa” e da batida da polícia, incrivelmente bem produzida e dirigida, é fotograda com a urgência e a tensão que o momento exige. Poucas coisas são difíceis como filmar a morte, especialmente em um filme cujo personagem principal está em contato e, literalmente, em diálogo com ela. E elas são muitas aqui, das decepções nos relacionamentos às fatalidades do cotidiano; das perdas e das descobertas. Na vida não se escreve como se fala. E a triste beleza disso, o preço da ignorância, é que se morre muitas vezes em vida antes dela acabar. Simplesmente Beautiful.
#BIUTIFUL (BIUTIFUL)
Espanha, México, 2010
Direção: ALEJANDRO GONZALES IÑÁRRITU
Roteiro: ALEJANDRO GONZALES IÑÁRRITU, ARMANDO BO E NICOLÁS GIACOBONE
Fotografia: RODRIGO PRIETO
Edição: STEPHEN MIRRIONE
Direção de arte: MARINA POZANCO
Música: GUSTAVO SANTAOLALLA
Elenco: JAVIER BARDEM, MARICEL ÁLVAREZ, HANAA BOUCHAIB, GUILLERMO ESTRELLA, EDUARD FERNÁNDEZ
Duração: 147 minutos