Em um mundo melhor (Dinamarca/Suécia, 2010 - vencedor do Oscar 2011 de melhor filme estrangeiro) é um filme tese apoiado na premissa de que a violência na macro-sociedade é gerada na micro-sociedade, entrecruzando a violência subjetiva e o que Slavoj Zizek chama violência “sistémica”: a conseqüência catastrófica do funcionamento homogêneo dos nossos sistemas econômicos e políticos. Dirigido pela dinamarquesa Susanne Bier, Haevnen (título original que quer dizer "Vingança") é um arremate da transitoriedade de sua família foragida por causa do nazismo - o que hoje, em suas palavras, reedita pela transitoriedade dos seus personagens. Assim, eles sofrem uma mudança na sua subjetividade fruto do impacto de acontecimentos violentos que se apresentam como verdadeiros traumas afetivos, mas que redirecionam a sua trajetória de vida e termina por abrir outra via, da não-violência.
Nesse contexto, acompanhando o modo como os personagens enfrentam suas perdas, a violência problematizada por Bier não provém apenas de um conflito infantil não resolvido, nem do recalcamento, nem do retorno sofrido de uma fantasia, nem de um desajuste na família, mas também da existência de uma impossibilidade de mostrar alguma coisa, que não pode ser nomeada, mas apenas aludida. Para ela, o filme é um conto moral. Ela reverencia o movimento "Dogma 95" fundado por Lars von Trier ao retomar a vingança de Grace em Dogville, depois do espetáculo do masoquismo feminino nele prolongado até o insuportável.
O que se vê na tela são três ações paralelas da violência global, da violência local e do pacifismo. Essas ações têm lugar na Dinamarca, dentro do colégio, do bairro, da família e, na África. O mal não é simplesmente excluído desses espaços, mas sim transformado em uma ameaça contra a qual se deve transmitir a mensagem, como nosso José Datrino: “gentileza gera gentileza”.
Em um campo de refugiados no Quênia, Anton (Mikael Persbrandt), o médico sueco, dedica-se a um trabalho humanitário. Aí a violência evidente está no caso de dominação social do tirano local monstruoso, como um dos líderes do clã assassino que corta a barriga de mulheres grávidas.
No bairro, a violência local posta em ação contra Anton que, esbofeteado pelo nativo racista, não revida, nos permite identificar uma violência subjetiva subjacente aos seus esforços humanitários que promovem a tolerância, bem como as atitudes de preconceito perante os estrangeiros.
Na escola, como resultado da truculência do bullying do qual Elias (Markus Rygaard) e Christian (William Johnk Nielsen) são vítimas, a violência está atrelada aos procedimentos no âmbito da educação e aos traumas pelos quais eles passam: Christian, recém-chegado de Londres, acaba de perder a mãe vítima de câncer, não titubeia em querer resolver as coisas pela vingança que, chegando ao seu termo, retorna ao seu ponto de partida: o ódio para com o pai pela fantasia edipiana de que ele desejou a morte de sua querida mãe; Elias, sueco, sofre da ausência do pai Anton, que também causa o pedido de divórcio de sua esposa Marianne.
Na relação entre os garotos, a agressão é fruto de uma dualidade entre o ódio e o amor, a vingança e o perdão, encarnada nas nossas causas de ser. E a passagem ao ato do impulso da vingança e do ressentimento levando a ação nas bombas explosivas contra o agressor do pai Anton, transforma-se em auto-agressões suicidarias.
Entrecruzando assim as manifestações do ódio em uma sociedade tida como civilizada e outra primitiva, a diretora tenta ir mais fundo nas mudanças exteriores no tempo e no espaço, correlatas às mudanças interiores pelas quais os personagens passam, sem perder a leveza. A solução encontrada equivale à distinção terminológica entre a “agressão”, que corresponde a um impulso de vida e a “violência” que é um impulso de morte. Ao final, a mensagem não é de um ingênuo pacifismo contra a violência e a guerra, mas sim que a violência que o homem combate faz parte da dimensão trágica da vida.
Dinara G. Machado Guimarães é Psicanalista, Doutora em Comunicação. Autora de "Vazio iluminado: o olhar dos olhares" e "Voz na Luz, em Psicanálise e cinema".