Críticas


GANGUES DE NOVA YORK

De: MARTIN SCORSESE
Com: DANIEL DAY-LEWIS, LEONARDO DICAPRIO, CAMERON DIAZ, JIM BROADBENT
08.02.2003
Por Pedro Butcher
O FAROL DE SCORSESE

Gangues de Nova York pode não ser o filme mais perfeito de Martin Scorsese, mas é sua obra-prima. Às vezes, no cinema, arte impura por excelência, o conjunto atropela os defeitos e a paixão do autor é de tal forma absorvida pela película que apaga detalhes incômodos. Quando a última imagem de Gangues de Nova York bate na tela – um dos finais mais bonitos do cinema, diga-se de passagem –, a certeza de que uma obra visceralmente pessoal e rara passou pelo projetor soterra pecadilhos insignificantes.



Scorsese começou a pensar em Gangues de Nova York há mais de 30 anos, quando esbarrou, na prateleira da casa de um amigo, com o livro homônimo de Herbert Asbury, escrito em 1928. Naquela mistura de reportagem e narrativa lendária, leitura obrigatória nos círculos de jovens enturmados dos anos 1970, um Scorsese de vinte e poucos anos encontrou ecos de histórias que ouviu de seu pai quando criança, sobre a Big Apple de antigamente. Histórias que lhe ajudariam a compreender sua própria presença ali: um americano filho de italianos católicos, crescido em Elizabeth Street (centro da imigração italiana) e freqüentador da catedral de St. Patrick (símbolo maior da imigração irlandesa).



Sob o impacto de Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick, que estreou em 1971, Scorsese primeiro imaginou Gangues como um “faroeste em Marte” estrelado por Malcom McDowell (faz soar um alarme, não?). O filme seria uma peça ultraviolenta sobre o passado da cidade, mas em tom moderno/futurista, capaz de lançar alguma luz sobre o presente. Curiosamente, tantos anos depois, Scorsese fez algo muito próximo disso, mas abandonando ambições futuristas (sem jogar fora a linguagem moderna) e abraçando uma concepção muito mais amadurecida dessa vontade de enveredar por uma viagem temporal.



O primeiro rascunho do roteiro ficou pronto em 1977, com assinatura de Jay Cocks, grande amigo de Scorsese e também autor da adaptação de A Época da Inocência, outra peça de época sobre Nova York. Mas o cineasta se envolveu com Touro Indomável, e por isso Gangues foi adiado. Touro estreou em 1980, pouco antes de O Portal do Paraíso, de Michael Cimino, uma produção caríssima, fracassar retumbantemente, falindo a produtora United Artists. “A era dos filmes pessoais de grande orçamento tinha chegado ao fim. Achei que não existia mais lugar para mim em Hollywood”, disse Scorsese no material de divulgação do filme.



Mas Scorsese tratou de criar o seu lugar, firmando-se como o melhor cineasta americano de sua geração. Em 2000, enfim, com financiamento da Miramax, rodou Gangues de Nova York, que supostamente passou por problemas de dinheiro e prazos, e não conseguiu ser lançado, como estava previsto, no Natal de 2001. A montagem, assinada pela parceira de longa data Thelma Shoonmaker (dos filmes de Michael Powell), levou mais de um ano para ser concluída, fato que mergulhou o filme em nuvens de boatos maldosos. Mas, como diz Scorsese, o que é um ano de atraso perto de 30 de espera?



Gangues de Nova York se passa num pedaço da cidade a poucos blocos da rua em que o cineasta cresceu, na “parte baixa” de Manhattan, e que foi devidamente varrido da face da ilha. O filme tem um breve prólogo em 1847, mas o grosso da trama se passa 16 anos depois, em 1863. Não por acaso, neste ano, NY estremeceu com os piores levantes populares de sua história, e que teriam trazido, segundo Scorsese, “as mais graves perdas de vida humana da cidade até o 11 de setembro”.



Exatamente nesse intervalo, iniciou-se a chamada “grande escassez” na Irlanda, que empurrou uma onda de imigração sem precedentes para os Estados Unidos. Cerca de 15 mil irlandeses chegavam diariamente a Nova York entre 1847 e 1855, período em que a população da cidade pulou de 60 mil para 800 mil habitantes.



A maior parte dos irlandeses chegava sem um tostão no bolso e sem falar inglês (seu idioma era o tradicional gaélico). Eles se instalavam numa grande favela próxima ao porto onde atracavam os navios conhecida como Five Points (Cinco Pontos), uma encruzilhada de cinco ruas que convergiam para a Paradise Square (Praça Paraíso). Ali, Nova York era a cidade de Deus e do diabo, uma confusão de gangues rivais, políticos corruptos, policiais em conflito e muita violência. Uma terra de ninguém onde a palavra “legalidade” simplesmente não existia.



Gangues dedica boa parte de seu tempo (2h45 de projeção) para descrever, deliciosamente, essa grande confusão. Na tela surge um espaço urbano que não existe mais, sobretudo na Nova York pós Giuliani. Nesse espaço sem ordem pública, um açougue é também um bar, um teatro chinês é também um bordel, um grande cortiço é refúgio de toda sorte de párias, etc.



No caos do Five Points, onde o Estado só se fazia presente na hora de captar votos, não era raro a polícia ser chamada para apartar uma briga e terminar brigando entre si, principalmente se aparecessem policiais da força metropolitana e da força municipal, que se odiavam (Rio de Janeiro?). Se um cortiço se incendiava, o saque era estimulado e os bombeiros, também de facções rivais, esqueciam o fogo para trocar sopapos. Um dos personagens mais fascinantes, inspirado numa figura verdadeira, é William “Boss” Tweed (Jim Broadbent), que entrou para a história como um dos políticos mais corruptos dos Estados Unidos, craque em manipular as gangues do Five Points em proveito próprio durante as eleições. Ladrão e oportunista, ele tinha um lema: “A aparência da lei precisa ser mantida, especialmente quando for infringida”.



Scorsese está estritamente interessado nesses aspectos formativos e nada lisonjeiros da cidade em que nasceu, cresceu e amou toda a vida. Um deles, “micro”, é o papel desse caldeirão fervente e violento que era o Five Points na formação da Nova York de hoje. O outro, “macro”, é a compreensão de como a maciça imigração irlandesa preparou terreno para a América atual.



Gangues de Nova York defende a idéia de que essa primeira grande leva de imigrantes serviu como boi de piranha para levas futuras (a italiana incluída). Sugere como a extrema pobreza que marcou esse período (assim como as gangues que se originaram dessas circunstâncias) deu origem, anos depois, às máfias comandadas por descendentes de imigrantes, irlandeses e italianos (principalmente). Mostra, ainda, uma característica central de NY ainda hoje: a tensão racial que pode ser sentida nos ares do metrô.



Para chegar a tudo isso, Scorsese criou um conflito hamletiano que serve de mero pano de fundo para um painel muito mais importante, de caráter histórico e social. Em 1847, no prólogo do filme, o menino Amsterdam Vallon testemunha uma briga de gangues. Em Paradise Square, coração de Five Points, duas facções da região se alinham frente à frente (Cidade de Deus?), até que, em meio a uma batalha em que pás, enxadas, machados, facas, unhas, dentes e crânios servem de arma, William Cunning mata o pai de Amsterdam Vallon, líder da gangue de irlandeses Dead Rabbits. Cunning (Daniel Day Lewis), mais conhecido como Bill the Butcher, é um “nativista” que tem absoluto horror dos imigrantes, especialmente dos irlandeses, considerados por ele a escória do mundo. Em geral de descendência inglesa, alemã ou do País de Gales, os “nativistas” se consideravam os legítimos americanos e destilavam seu ódio promovendo grandes batalhas nas ruas contra os imigrantes. “Se eu pudesse, atirava neles antes que pusessem os pés na América”, diz the Butcher.



Dezesseis anos depois, em 1863, Amsterdam (Leonardo DiCaprio) volta para se vingar. Infiltra-se na gangue de Bill e torna-se seu protegido, enquanto pensa na melhor forma de matá-lo. Nesse meio tempo, se envolve com Jenny Everdeane (Cameron Diaz), trombadinha em forma de mulher que prestava serviços sexuais a Bill.



Mesmo esse conflito hamletiano trivial, que poderia ser considerado o ponto fraco do filme, é bastante bem desenvolvido. Os personagens de Amsterdam e Jenny respiram, têm vida, mas é Bill the Butcher a alma do negócio. Não por acaso, é uma das poucas figuras inspiradas em um real cidadão da antiga Nova York, um açougueiro chamado Bill Poole, que na verdade morreu em 1855, bem antes do ano em que se passa o filme.



Bill the Butcher é a figura-chave para se compreender a tese que Scorsese quer defender, de que esse grande conflito entre imigrantes e “nativistas” foi o primeiro teste ao qual os Estados Unidos da América foram submetidos antes de se tornar uma nação imperial, mítica, “land of the free, home of the brave”. Gangues de Nova York, nesse sentido, é um épico da jovem América ou, nas palavras de Scorsese, “uma reunião de histórias da América experimental, histórias das nossas raízes”.



Para justificar seu ódio pelos imigrantes, Bill the Butcher evoca sempre a figura do pai, morto na guerra da independência contra os ingleses, um homem “disposto a dar a vida pelo seu país”. Daniel Day Lewis, como sempre em trabalho estarrecedor, dá humanidade rara a essa figura protofascista ao torná-lo um “homem de convicções”. Nas palavras do próprio ator, o “homem de convicções” vive em “estado mental perigoso” e numa “posição extremamente agradável, até relaxante”. Ele é, no fim das contas, um homem que não permite a dúvida e que vive para impor sua crença. (Um imperialista?).



O grande conflito final entre Amsterdam e Bill the Butcher coincide com a explosão dos levantes da Nova York em 1863, que por sua vez coincidem com o ápice da Guerra da Secessão, outro evento seminal na fundação dos Estados Unidos como nação moderna.



Mas Scorsese trata os aspectos oficiais da História americana – representados, basicamente, pela Guerra da Secessão e a luta do norte abolicionista contra o sul escravagista – com pouco caso. Ele quer se deter em outra história, falar da América que “nasceu nas ruas”, e cujo fato histórico determinante teria sido esse levante, uma das maiores sublevações populares do país, comandada por imigrantes pobres ainda não “integrados” ao corpo da confederação.



Assim como os Estados Unidos ainda eram um país dividido, Nova York era uma cidade partida. Os levantes começaram depois que o presidente Abraham Lincoln intensificou a rigorosa convocação obrigatória de cidadãos americanos para lutar contra o sul. Rigorosa para os pobres, pois estavam livres da guerra os que tivessem condições de pagar US$ 300, uma fortuna para a época. O povo foi para a rua. Esse povo, basicamente, saiu dos Five Points, que além de “nativistas”, irlandeses, chineses e outros imigrantes da primeira leva, trazia ainda os negros, discriminados por todos.



Quando Amsterdam e Bill the Butcher estão frente a frente para seu acerto de contas, Nova York está em convulsão. E aquele conflito hamletiano desaparece (literalmente) em meio à fumaça de outro conflito. Num cenário apocalíptico os dois rivais não conseguem mais enxergar um ao outro devido à poeira dos tiros de canhão disparados para acalmar a turba. O governo americano literalmente bombardeou o Five Points para acabar com os levantes, que duraram quatro dias.



Maior, mais audacioso e mais pessoal filme de Martin Scorsese, Gangues de Nova York resume todas as obsessões de seu cinema: a religião, a paixão por Nova York, a obsessão pelos personagens que estão à margem da sociedade (que ele herdou do neo-realismo italiano) e, enfim, uma vontade de refletir sobre o tempo.



Essa vontade, aqui, aparece num trabalho minucioso de arqueologia urbana. A equipe de arte usou objetos de uma escavação recente feita na área do Five Points (e que se perdeu por completo no atentado do World Trade Center) como peças de cena para o filme. O historiador Luc Sante, autor do livro Low Life e consultor de Scorsese, descreveu a sensação de caminhar no set, todo construído na Cinecittà italiana, como “uma experiência semelhante a uma máquina do tempo”.



Gangues de Nova York é um trabalho radical no sentido de que busca raízes e original porque é como a origem tardia de toda a obra de Scorsese. Como toda obra-prima, é o farol de uma carreira, que ao se voltar para o passado ajuda a iluminar o presente.



# GANGUES DE NOVA YORK (GANGS OF NEW YORK)

EUA, 2002

Direção: MARTIN SCORSESE

Roteiro: JAY COCKS, STEVE ZALLIAN, KENNETH LONERGAN

Produção: MICHAEL HAUSMAN

Fotografia: MICHAEL BALLHAUS

Montagem: THELMA SHOONMAKER

Música: HOWARD SHORE

Elenco: DANIEL DAY-LEWIS, LEONARDO DICAPRIO, CAMERON DIAZ, JIM BROADBENT, LIAM NEESON, HENRY THOMAS, JOHN C. REILLY, BRENDAN GLEESON

Duração: 165 min.

site: www.gangsofnewyork.com



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