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DITADURAS NAS TELAS – E ECOS DE <I>NORWEGIAN WOOD</I>

10.05.2011
Por Ricardo Cota
DITADURAS NAS TELAS - E ECOS DE <I>NORWEGIAN WOOD</I>

MIRADAS INVISÍVEIS

10/05/2011



Dois filmes latino-americanos em cartaz em Paris propõem reflexões bem semelhantes sobre as ditaduras em seus respectivos países. Santiago, 1973: Post Mortem de Pablo Larraín, em competição no último Festival de Veneza, se passa nos dias que cercam o golpe militar que derrubou Salvador Allende, no Chile. Apesar da evidência política já enunciada no título (francês; o original é apenas Post Mortem), não se deve esperar um declarado manifesto contra a opressão.



Santiago se insurge nas reentrâncias de uma história que se apresenta em ritmo propositadamente lento, como uma marcha fúnebre. Mario é um funcionário de um necrotério de vida monástica que é atraído de forma obsessiva pela vizinha, uma dançarina de cabaré. À medida que se aproxima do seu objeto de desejo, Mario, um alienado, vê os fatos políticos baterem à sua porta. A dançarina é irmã de um militante e o movimento no necrotério aumenta de forma progressiva, sobretudo depois da chegada de um cadáver muito especial: o de Salvador Allende.



Expoente do novo cinema chileno, Pablo Lorraín continua aqui sua revisão da década de 70, já vista em Tony Manero, seu filme de estréia cujo roteiro segue os passos de um serial killer obcecado por John Travolta. Em Santiago, 1973, um filme mais maduro, o cineasta refina sua narrativa. O tom mórbido, sombrio, é obtido a partir de uma fotografia cinzenta e de uma exploração dos tempos literalmente mortos da narrativa, o que não significa monotonia. Há muitas sequências fortes, dignas de registro, como a da revolta no necrotério diante do acúmulo de cadáveres e a corajosa sequência final, em que a loucura se confunde com o desejo quixotesco de conter a história.



La Mirada Invisible (*), que estreia esta semana, é mais uma dessas preciosidades do cinema argentino. Dirigido por Diego Lerman, novo talento, o filme se passa também numa data simbólica, março de 1982, quando o coturno da ditadura argentina começa a deixar de marcar terreno depois da vergonhosa derrota nas Malvinas. Assim como o Mario do filme chileno, Maria Teresa vive uma realidade à parte. Entre os muros de uma escola, exerce sua função de inspetora, reprimindo moral e sexualmente os alunos.



Versão sexualizada do personagem imortalizado por Norma Aleandro em A História Oficial, Maria Teresa fará sua iniciação política conhecendo outro tipo de violência, a violência sexual da qual ela é agente e vítima. Assim como o Mario de Santiago, 1973, Maria Teresa é um personagem que pretende viver alheio, mas que se vê obrigado a atender as batidas à porta da história.



As miradas invisíveis de ambos os filmes prosseguem uma leitura que tem sido comum no cinema latino-americano dos anos de chumbo e que no Brasil produziu ecos em O Ano em que meus pais saíram de férias, de Cao Hamburguer. São filmes que revêem a história, não numa perspectiva de massa, de movimento conjunto, mas a partir de histórias de individualidades. Em ambos os casos, a maior protagonista é a história e a maior vítima o homem.



(*) Fez parte da mostra “Foco Argentina” no Festival do Rio 2010 depois de exibido em Cannes no mesmo ano.

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TRAN ANH HUNG NO PANTEÃO DOS GRANDES

08/05/2011



Wong Kar Wai não está só. Ainda bem. Com Norvegian Wood, traduzido para o francês como La Ballade de L’Impossible (sim, os tradutores franceses também inventam), Tran Anh Hung entra na categoria de mestre do melodrama contemporâneo. O filme estreou esta semana em Paris como favorito da crítica. E faz por merecê-lo.



Sem abandonar a platitude e o refinamento estético de suas produções anteriores, a trilogia O Cheiro do Papaia Verde, Entre a Inocência e o Crime e As Luzes de um Verão - Tran Ahn Hung, munido de um roteiro poderoso, inspirado em romance Huraki Murakami, materializa uma história de amor pós-adolescente de complexa geometria e rara expressão poética.



O contexto de Norwegian Wood reforça suas intenções. Em meio à efervescência política da Tóquio do final dos anos 60, Watanabe, um jovem solitário, alheio à turbulência política, vive experiências definitvas para consumar seu rito de passagem à vida adulta. O triângulo inicial mostra Watanabe como testemunha do amor platônico entre Naoko e Kizuki, um jovem que se suicida inexplicavelmente nos dez minutos iniciais. A tragédia afasta temporariamente Watanabe e Naoko, que ao se reencontrarem iniciam um romance marcado pela sombra da perda de Kizuki.



O cineasta Tran Ahn Hung segue essa história marcada pela loucura, frigidez, insegurança sexual e sobretudo pelo espectro da morte sem economizar na utilização dos recursos técnicos que o consagram como um dos grandes estetas da contemporaneidade. O prazer de filmar está presente a cada plano, a cada travelling, a cada close. Tran Ahn Hung é um mestre da contemplação e abusa, sem agredir o espectador, do contraponto entre o drama dos personagens e as mutações climáticas e naturais do tempo dramático.



Como em seus outros filmes, Norwegian Wood é um esforço coletivo. Ao naturalismo dos excelentes atores, somam-se uma impecável trilha sonora, sob o comando de Jonny Greenwood, e a fotografia de Mark Lee Ping-Bin . Na trilha original, Greenwood, o mesmo de Sangue Negro, mescla solos delicados de guitarra com inflexões melodramáticas de violinos, além de citar clássicos do pop, entre eles a evidente “Norwegian Wood”, dos Beatles, que dá título ao filme.



Quanto à fotografia, basta lembrar que Lee Ping-Bin é o diretor de fotografia de Amor à Flor da Pele, do supracitado Wong Kar Wai. É ele quem dá ao filme a coloração poética que traduz os diversos estados de espírito do protagonista e de seus pares. Depois de uma passagem mal-sucedida por Hollywood, onde realizou o aculturado Fugindo do Inferno, Tran Anh Hung retorna ao cinema autoral e se afirma no panteão dos grandes com esta balada de amor e dor.

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