Peço licença para inserir uma voz dissonante no concerto de elogios ao drama As Horas, de Stephen Daldry. Reconheço ali uma vontade de fazer “arte maior” dentro dos limites do cinema comercial internacional. Vejo que uma atitude contemporânea semelhante à de Charlie Kaufman e Spike Jonze em Adaptação preside essa exploração intertextual da vida de Viginia Woolf e de sua personagem Mrs. Dalloway. As Horas seria louvável como projeto de conciliar o material moderno e o tratamento pós-moderno. Mas não me pareceu o grande filme que vem sendo apregoado.
Para começar, o paralelismo entre as três narrativas (três mulheres, três tempos, uma só angústia) soa bastante artificial, pendendo mais para a literatice do que para a invenção dramatúrgica. Seria mesmo necessário sublinhar a simetria mediante recursos tão óbvios como as mulheres se beijando ou quebrando ovos em diferentes faixas temporais? Seria incontornável despejar explicações tão funcionais dos tormentos das personagens como as servidas nas longas conversas entre Virginia e Leonard (na estação de trem) ou Clarissa e Richard (no apartamento desse último)? Tudo isso aponta insuficiências de um roteiro que tem sido endeusado como a última maravilha no gênero.
Mas o que mais me incomoda no filme é a direção vaidosa de Daldry. Ele estimula a superatuação das atrizes, do que apenas Juliane Moore consegue sair ilesa. Meryl Streep desdobra-se em nuances faciais, como se toda a interioridade de Clarissa pudesse ser traduzida para tiques de olhos e bocas. Para não falar na cena da cozinha, diante de Jeff Daniels, em que ela desaba num “piti” que só resulta patético. Nicole Kidman também parece ter escondido seu talento atrás daquele nariz de cera horrível, mais para Maga Patalógica do que para Virginia Woolf. Um nariz que nos conclama a não acreditar em nada do que está sendo vivido na tela. E Ed Harris, num ingrato clichê de aidético, só aparece para dar sucessivos shows de overacting.
As três atrizes, grandes sem dúvida, dividiram o Urso de Berlim pela mera imposição de sua tripla presença. Mas, por mais que se esforcem, não têm texto para afirmar-se como algo mais que meros estereótipos, nem para dimensionar a natureza da angústia que consome suas personagens. Em Mrs. Dalloway, Virginia Woolf conseguia isso através da concentração de tempo e de idéias. As Horas promove a dispersão do tema, oferecendo em troca uma reiteração vazia e fugaz.
A bela trilha de Phillip Glass ocupa um lugar de honra na trama narrativa do filme – seja no início, quando tece uma rede sonora entre muitas cenas sem palavras, seja no desenvolvimento, quando se torna a voz das emoções de Virginia, Laura e Clarissa. Glass tenta dar um toque de distinção a um filme que, de tanto ostentar “competência”, resulta simplesmente kitsch.
# AS HORAS (THE HOURS)
EUA, 2002
Direção: STEPHEN DALDRY
Roteiro: DAVID HARE
Produção: SCOTT RUDIN E ROBERT FOX
Fotografia: SEAMUS McGARVEY
Montagem: PETER BOYLE
Música: PHILIP GLASS
Elenco: NICOLE KIDMAN, JULIANE MOORE, MERYL STREEP, ED HARRIS, TONI COLLETTE, CLAIRE DANES, JEFF DANIELS, JOHN C. REILLY, MIRANDA RICHARDSON
Duração: 116 min.
site: www.thehoursmovie.com
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