O objetivo de uma resenha de um DVD importado é chamar atenção para filmes interessantes que, por razões diversas, não conseguiram a chance de chegar às engarrafadas telas brasileiras – espera-se que algum dia eles cheguem. Como o mercado de DVD no Brasil permite o aluguel de edições estrangeiras, Auto Focus pode ser encontrado em locadoras das capitais do país e em outras cidades. Aos que se sentirem chateados por serem essas dicas mais direcionadas a quem domina um idioma estrangeiro, um aviso: a maioria esmagadora desses DVDs tem legenda em espanhol, o que permite algum grau de compreensão às pessoas que não falam inglês.
Auto Focus, a trágica história do ator televisivo Bob Crane, traz o diretor-roteirista Paul Schrader (este é apenas o segundo filme de Schrader na direção cujo o roteiro ele também não escreveu) de volta a um tema que permeia algumas realizações de sua filmografia: a sexualidade como uma forma de danação. Pode ser que algumas pessoas vejam nisto um ranço moralista (no sentido equivocado que alguns bem pensantes fazem da palavra) da formação de calvinista (ramo do protestantismo) com ascedência holandesa do diretor norte-americano (inclusive ele nunca viu um filme antes dos 18 anos de idade, por ordem dos pais). Só que nos filmes do diretor os aspectos morais (como em sua bela estréia na direção, o drama ético sobre operários Vivendo na Corda Bamba) são coisa viva em conflito com os instintos das pessoas – nada muito diferente do que há na vida e na arte.
Alguns dos personagens schraderianos (o personagem-título de Gigolô Americano,, a mulher de A Marca da Pantera, o escritor japonês da cinebiografia Mishima – Uma Vida em Quatro Capítulos), bem como agora Bob Crane, sejam ele fictícios ou biografados, têm destinos conturbados ou mesmo trágicos em que podemos ver o exercício de suas sexualidades como uma espécie de trilha que os conduziu à tais fins, o que pode soar como uma coisa punitiva, mas o diretor-roteirista justamente dá aos seus personagens uma espécie de altivez bizarra, quase como se eles fossem melhores do que a vida lhes reservou e o mundo que os cerca – lembrando que os calvinistas acreditam na predestinação da salvação ou danação da alma. Não se trata de contrapor personagens anti-heróis x mundo cruel, e sim de mostrar essa sexualidade como uma força vital de inserção e diálogo com a vida (diálogo bastante atribulado sem dúvida), e fazer isso de uma maneira muito mais complexa do que aparenta, sem cair no maniqueísmo fácil, mostrando um Bem e um Mal que se interpenetram (sem trocadilho, por favor) mas tampouco abusando do relativismo medíocre.
Em Schrader, sexo é vida, mesmo levando à morte ou ao sofrimento, e talvez seja uma espécie de purificação dupla, o que leva personagens como a prostituta mirim de Taxi Driver (obra-prima de Martin Scorsese cujo roteiro foi escrito por Schrader) e a adolescente que virou atriz pornô em Hardcore – No Submundo do Sexo (magistral atuação do falecido George C. Scott como o pai religioso da menina), a serem agentes de uma mudança pessoal e no outro, desequilibrada, no neurótico de guerra vivido por Robert De Niro em Taxi Driver (que tenta uma redenção para lá de desvairada) e incompleta no pai da menina em Hardcore (que apesar de tudo, não consegue ter forças para ajudar a outra menina como esta havia previsto).
Em Auto Focus o diretor está bem à vontade com alguns dos temas com que já tratou. Bob Crane (Greg Kinnear) foi o astro da série de TV Guerra, Sombra e Água Fresca, que fazia humor no Holocausto (diferente de humor com o Holocausto) mostrando a rotina de um campo de oficiais prisioneiros dos alemães durante a Segunda Guerra, e que fez muito sucesso nos EUA dos anos 60 – no Brasil a Rede Bandeirantes reprisou-a durante os anos 80. Casado, pai de família, mas viciado em sexo (o filme reproduz seu lema, “um dia sem sexo é um dia desperdiçado”) Crane precisava fornicar todo dia como alguns precisam de uma dose de droga.
Bonitão e aproveitando a fama, ele tinha como parceiro de sedução de jovens mulheres, o técnico em eletrônica John Carpenter (homônimo do mestre do cinema fantástico), feito por Willem Dafoe, que lhe apresentou à pré-história dos equipamentos de vídeo portátil. O meigo detalhe é que Crane e Carpenter usavam os ditos para filmar sem autorização das moças, as orgias sexuais de ambos, regadas a bebida e drogas – quando o hábito dos dois veio a público, algumas moças os acusaram de assédio sexual. O detalhe ainda mais meigo é que Scotty, filho do segundo casamento do ator, ganha uns trocados vendendo fotos, vídeos e documentação variada das surubadas paternas num site da Internet –e por isso vive em eterna briga com o meio-irmão Robert Crane, do primeiro matrimônio. O ator teve um fim terrível, num crime até hoje não esclarecido, sendo morto em 78 a golpes de objeto metálico na cabeça, enquanto dormia num quarto de hotel barato. Temos então armado um palco perfeito para um filme schraderiano, e de quebra com a possibilidade de se falar do tema predileto de muitos, o outro lado do sonho americano.
E isto vem sobretudo numa cena curtinha de paródia discreta porém interessante, em que Crane chega em casa (e o lar dele tem graças à direção, cenografia, fotografia, figurinos, etc, um ar de seriado de TV de família perfeita dos anos 50/60), e responde à mulher (Rita Wilson, esposa de Tom Hanks na vida real), com aquele sorriso paspalho de pai do tal seriado, que os estranhos objetos que ele está trazendo (os equipamentos de vídeo), servirão para fazer filmes caseiros (e nós bem já sabemos para o quê eles servirão). No filme há uma certa atmosfera disso tudo, na construção dos planos, no tocar a trama, como se fosse necessário dizer que há algo estranho no ar, nunca porém caindo no fetichismo indulgente do já mencionado outro lado ..., o que pode até não saciar alguns. É bom notar que a biografia do diretor se coaduna com características fortes da cultura dos EUA (e explica seu gosto pela trajetória de Crane), que é a mescla explosiva do puritanismo protestante com o culto à sacanagem, uma coisa ligada de forma maluca à outra numa mescla atordoante, o que faz do sexo um tema muito mais presente, e de uma forma meio diferente da que pensamos, no cotidiano dos EUA.
O problema de Auto Focus, bem como a maior parte da filmografia do diretor nos anos 90 (exceção feita ao interessante, embora nada excepcional, Temporada de Caça, que deu um merecido Oscar de coadjuvante para James Coburn) é que o autor não consegue equacionar o aspecto prático, narrativo do filme, com o lado do tratar dos temas fortes de uma maneira mais sofisticada e não palatável ou clara a todos, poderíamos dizer, buscando uma certa transcedência (Schrader é autor de um livro nunca publicado no Brasil, O Estilo Transcedental: Ozu, Bresson e Dreyer, sobre a obra desses três grandes cineastas). O resultado é que o filme não é nem uma cinebiografia, uma história muito bem contada da vida de Crane, nem atinge o nível de excelência que o autor conseguiu ao tratar de temas que lhe são tão caros, aqui ele apenas os tangencia sem a argúcia de antes.
Vindo de duas colaborações prévias com o diretor (era o traficante de Dono da Noite e o irmão de Nick Nolte em Temporada de Caça), Willem Dafoe decepciona como Carpenter, com caretas sem sentido e comprovando o desnível recente de suas atuações (medonhas nos arrasa-quarteirões Velocidade Máxima 2 e Homem-Aranha, brilhante com o auxílio de maquiagem pesada em A Sombra do Vampiro).
Em compensação, Greg Kinnear tem atuação segura como Crane, com alguns belos momentos como a convivência com a família nos áureos tempos (em que o autor transparece não puro cinismo maquiavélico de quem leva vida dupla, mas apenas uma certa modorra de um impulsivo contumaz que não se satisfaz só com vida segura, o que parece que era mesmo o comportamento real de Crane) e na decadência da tentativa de voltar a atuar em bons papéis – boa a cena dele com seu velho empresário. Kinnear talvez aproveite, sem querer, uma semelhança de sua biografia com a de Crane. O falecido ator começou como disc-joquéi de rádio (primeira cena do filme), e demorou a virar intérprete; Kinnear tinha feito pouco cinema (e produções sem impacto comercial e/ou artístico), e despontou para a fama apresentando um programa televisivo num canal de entretenimento, sendo depois chamado para trabalhar em filmes mais badalados. Ele está longe, bem longe, de ser um daqueles atores geniais, mas teve pelo menos um desempenho excelente, no papel do vizinho gay de Jack Nicholson em Melhor é Impossível.
É também bom assinalar que entre o seu time de produtores, Auto Focus conta com Scott Alexander e Larry Karaszewski, famosos como roteiristas de outras cinebiografias de personalidades da vida real meio marginais e anti-heróis, tais como o cineasta Ed Wood, Larry Flint, o pornógrafo empresário de O Povo Contra Larry Flint, e o comediante Andy Kaufman de O Mundo de Andy. Mais uma coisa que faz com que este filme mereça ser visto, já que ele se insere na obra de outros artistas além de Paul Schrader.
O DVD é rico em extras, e o melhor são os dois documentários que somam pouco mais de 50 minutos. Neles, acompanhamos o processo que John Carpenter sofreu ao ser acusado da morte de Bob Crane, mas apenas dez anos depois da morte do ator – o ator estava tentando acabar com a amizade com Carpenter há tempos. Carpenter foi absolvido por insuficiência de provas cabais de sua culpa (parece que ele era culpado mesmo), e morreu quatro depois de julgado, de causas naturais. O documentário traz entrevistas com os advogados de acusação e defesa de Carpenter, alguns parentes seus (como a viúva), e com Robert Crane.
#AUTO FOCUS
EUA, 2002
Direção: PAUL SCHRADER
Roteiro: MICHAEL GERBOSI
Música: ANGELO BANDALAMENTI e ANDREW BARRETT
Fotografia: FRED MURPHY
Montagem: KRISTINA BODEN
Elenco: GREG KINNEAR, WILLEM DAFOE, RITA WILSON, MARIA BELLO, RON LEIBMAN.
Duração: 107 minutos
Região do DVD: 1
Legenda: Inglês, Espanhol.
Formato de Tela: Widescreen / Cor
Áudio: Inglês (Dolby Digital Mono 5.1) e Francês
Extras: Faixa de comentários, em separado, de Paul Schrader / Greg Kinnear e Wille Dafoe / Scott Alexander, Larry Karaszewski e Michael Gerbosi. Dois documentários. Trailers: a versão censura livre para ser exibida antes de qualquer filme, e a versão adulta, com mulheres de seios de fora. Making-Of (curto) com os bastidores do filme. Cinco cenas não aproveitadas na montagem final. A única relevante é a que a primeira mulher de Crane acha na garagem as tiras dos filmes com as perfomances do marido. No filme mesmo ela só aparece relatando a descoberta à ele.
Distribuidor: Columbia Tri-Star