Críticas


ÚLTIMA NOITE, A

De: SPIKE LEE
Com: EDWARD NORTON, PHILIP SEYMOUR HOFFMAN, BARRY PEPPER
26.05.2003
Por Carlos Alberto Mattos
DESPOJOS DA CATÁSTROFE

Um mal-estar percorre a espinha dorsal de A Última Noite. Difícil imaginar como seria esta adaptação do romance de David Benioff caso o projeto não fosse atravessado pelos atentados de 11 de setembro de 2001. Spike Lee acabou tomando a história das últimas 24 horas de liberdade de um traficante de drogas condenado a sete anos de prisão como metáfora expressionista de uma Nova York tensa, deprimida e perplexa.



Melhor do que qualquer documentário sobre o assunto, o filme descortina a cidade acuada em suas entranhas, tentando canhestramente manter-se viva nas ruas de bairros, boates, bolsa de valores etc. O fantasma das torres do World Trade Center é um dado concreto que, enquanto o cinema americano em geral tentou deletar de suas imagens ou simplesmente ignorar, Spike Lee encarou de frente como objeto de meditação e signo de luto. Uma das cenas mais longas e estáticas do filme se passa ao lado de uma vidraça diante do Ground Zero, quando os caminhões ainda recolhiam detritos da maior catástrofe da história moderna dos EUA.



Mas a cidade não é o único responsável pelo incômodo em que se banha A Última Noite. O itinerário insólito de Monty Brogan (Edward Norton) antes de se recolher ao presídio é uma espécie de via sacra onde cada “estação” é um confronto consigo mesmo ou com seus entes mais queridos. São todas relações muito difíceis. Com o pai (Brian Cox), Monty se divide entre a culpa e uma sombra de rancor, pois mesmo condenando a ocupação criminosa do filho, o velho bombeiro aposentado havia pago as dívidas do seu bar com o dinheiro sujo de Monty. Com a namorada, a negra porto-riquenha Naturelle (Rosario Dawson), Monty se consome em dúvidas – suspeita que ela o tenha entregue à polícia. Monty interage, ainda, com seus três melhores amigos: um corretor da bolsa (Barry Pepper), yuppie cínico que personifica o outro lado da moeda do generoso e mal-sucedido Monty; um professor retraído (Philip Seymour Hoffman) que não resiste às tentações de uma aluna chantagista (Anna Paquin); e um imigrante russo (Tony Siragusa), com quem ele atua no tráfico.



Em todos esses contatos, uma estranha ambigüidade dissolve as barreiras entre o afeto e a agressão, a sinceridade e a desconfiança. Isso não apenas torna os personagens complexos e desafiadores para o espectador, como permite à dupla Lee-Benioff fazer de cada cena um pequeno debate. Eles parecem dizer: “prestem atenção nessa história porque nada aqui é simples”. Tome-se como exemplo o desabafo de Monty diante do espelho (de si próprio), um quase-clipe de xingamentos contra os imigrantes, terroristas, policiais, minorias e todas as classes que compõem o tapete multiétnico e multicultural de NY. Como não ver nisso um misto de grito de revolta e declaração de amor pela cidade que Lee sempre tematizou em seus filmes?



Logo na seqüência de abertura, o filme oferece uma parábola sobre a generosidade. Monty socorre um cachorro ferido, que o agride impiedosamente. Mesmo assim, Monty insiste em dominá-lo e levá-lo para um veterinário. Na seqüência final, esse mesmo cão estará presente, fechando o ciclo da parábola. Mas as idéias de cura e superação ficam só por aí. No mais, prevalece uma sensação de derrota, nada lisonjeira para o país dos superpoderes e da autoconfiança. Os créditos iniciais se sobrepõem à imagem do Tribute in Light, o memorial temporário que preencheu o vácuo das duas torres com jatos de luz azul. É a representação poderosa de um consolo apenas virtual. Da mesma forma, o tema da segunda chance, desenvolvido no último trajeto de Monty em companhia do pai, não passa de hipótese idealizada, visita efêmera a um tema clássico do cinema americano, mas inviável em quadro obscuro como este.



A Última Noite corre o risco de ser confundido com um produto nacionalista, se não atentarmos para a posição de seus signos. Faz, certamente, um lamento pela tragédia com sabor de penitência, aspecto devidamente sublinhado pela tocante trilha fúnebre de Terence Blanchard. Mas, em vez de ceder aos clichês do drama cívico, Spike Lee convida à reflexão e, por vias tortas, elogia a diversidade da sua Nova York.



Os dois eixos do filme nem sempre se articulam satisfatoriamente. Fica uma impressão de que os comentários sobre a cidade pegam carona (às vezes forçada) no drama um tanto cool de Monty Brogan. Por outro lado, pode-se acusá-lo de tipificar cada vez mais seus personagens com traços muito fortes, no limite da caricatura. O que não se pode é negar seu talento em lidar com esses mesmos tipos. A Hora do Show (Bamboozled) era um filme extraordinário com esses ingredientes.



Pode-se, ainda, apontar um certo descaso com os personagens femininos, aliás traço característico de grande parte da obra de Lee. Mas a vitalidade com que ele filma, a confrontação sempre estimulante com as questões sociais tornam seus trabalhos fascinantes e urgentes para além das deficiências. A Última Noite é mais um êxito na carreira de um cineasta que não vira as costas para os temas mais delicados que a realidade à sua volta lhe sugere.



# A ÚLTIMA NOITE (The 25th Hour)

EUA, 2002

Direção: SPIKE LEE

Produção: SPIKE LEE, JON KILIK, TOBEY MAGUIRE E JULIA CHASMAN

Roteiro: DAVID BENIOFF

Fotografia: RODRIGO PRIETO

Montagem: BARRY ALEXANDER BROWN

Música: TERENCE BLANCHARD

Direção de arte: JAMES CHINLUND

Elenco: EDWARD NORTON, PHILIP SEYMOUR HOFFMAN, BARRY PEPPER, ROSARIO DAWSON, ANNA PAQUIN, BRIAN COX, TONY SIRAGUSA

Site do filme: http://25thhour.movies.go.com/



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