Conta-se que, durante a filmagem de O Raio Verde, o diretor Eric Rohmer queria porque queria captar com as câmeras o fenômeno atmosférico autêntico de que se fala no filme – e no romance homônimo de Julio Verne. Trata-se de uma ilusão de ótica: em dias muito limpos, vê-se durante alguns segundos, na costa da França, uma linha verde no horizonte, ao amanhecer ou ao entardecer. Quem enxerga o raio, diz a lenda, descobre o que se passa no coração alheio e, portanto, nunca será enganado em assuntos sentimentais.
O tempo, porém, não ajudou. Com todas as seqüências já filmadas, Rohmer esperou semanas, em vão, mantendo a equipe de prontidão. Por fim, com o orçamento estourado, ele se conformou e decidiu recorrer aos recursos do laboratório, produzindo artificialmente o raio que se vê na tela. Não sei se a anedota é verdadeira, mas ela diz muito sobre o cinema de Rohmer. Em O Raio Verde, como em muitos de seus filmes, os personagens passam muito tempo de suas vidas esperando que lhes aconteça algo perfeito, mas acabam tendo que se conformar com o possível.
É o caso da protagonista Delphine, interpretada por Marie Rivière, uma das preferidas de Rohmer, que aliás assina com ele o roteiro. Delphine é uma secretária, melancólica por conta da dificuldade de encontrar sua cara metade. Ela passa as férias fazendo e desfazendo planos, interrompendo viagens, voltando para casa. Como se sabe, as férias para um parisiense são uma instituição sagrada, e é virtualmente proibido ficar na capital: todos têm a obrigação moral de viajar, de desfrutar. Mas o que fazer quando se precisa de carinho, e não de tempo ocioso? Aparentemente as coisas não correm mal. Delphine vai à praia, conhece uma animada garota sueca, é paquerada. Mas o fato é que ela descobre que a solidão não depende de se estar ou não acompanhado.
Com a simplicidade característica de Rohmer, O Raio Verde é o relato dessa busca infrutífera para preencher um vazio afetivo. Mais uma vez, o diretor obtém um efeito de estranhamento, que decorre do fato de fazer um cinema que lida com o cotidiano, mas que imperceptivelmente tangencia dilemas morais, questões abstratas, e mesmo impasses filosóficos. Ou seja, Rohmer filma conceitos, pela via paradoxal da rotina de personagens aos quais, superficialmente, quase nada acontece. O filme, aliás, é o quinto da série “Comédias e Provérbios”, que se dedica justamente a ilustrar, com fábulas contemporâneas, velhas verdades sobre a condição humana.
O Raio Verde reafirma Rohmer como o cineasta da Nouvelle Vague que melhor sobreviveu ao movimento. Ele faz um cinema vivo e rigorosamente contemporâneo. Seus filmes não envelhecem, porque não estão presos a fórmulas nem a modismos. E, sobretudo, Rohmer é dotado de uma sensibilidade para a alma humana que dispensa qualquer raio verde para entender o que se passa nos corações dos homens e das mulheres que filma.
# O RAIO VERDE (LE RAYON VERT)
FRANÇA, 1986
Diretor: ERIC ROHMER
Música: JEAN-LOUIS VALERO
Fotografia: SOPHIE MAINTIGNEUX
Elenco: MARIE RIVIÈRE, LISA HEREDIA, ERIC HAMM, VINCENT GAUTHIER, SYLVIE RICHEZ, VIRGINIE GERVAISE, RENÉ HERNANDEZ.