A ficção cientifica trabalha com uma forma de simbologia semelhante à do mito. De fato, ela em geral promove uma inversão temporal da lógica que os mitos utilizam, pelo menos da mais tradicional. Em vez de rebater a lógica do presente em um passado ancestral, de origem (como um conto de fadas ou em um livro bíblico como Gênesis, por exemplo), ela costuma rebater esse presente no futuro. Salvo em casos metalingüísticos mais extremos – como em um Alphaville, de Godard – o futuro se torna sempre um espelhamento simbólico de uma problemática estabelecida no presente. A dimensão profética da ficção científica é geralmente na verdade um véu que oculta a dimensão historiográfica ou de crítica/denúncia.
A série Matrix se mostrou particularmente atraente ao surgir, no final dos anos 90, por que ela trabalha duplamente com esse espelhamento. O retrato traçado pela saga dos hackers que querem libertar o homem das máquinas que lhe impuseram, além da escravidão, um mundo ilusório no qual acreditam viver normalmente, é, em um primeiro olhar, sem dúvida profética – no sentido em que coloca no horizonte dos eventos futuros uma problemática pertinente para um mundo em que a alta tecnologia se tornou um dado cotidiano e a interação homem-máquina uma problemática para o cidadão comum, ainda que certamente não na proporção extrema proposta pelo filme. Mas é a dimensão de metaforização do próprio presente de Matrix (sempre é) a mais importante. Isso porque ela consegue assumir ao mesmo tempo a forma de uma metáfora crítica historiográfica e política e mitopoiese ontológica.
A segunda é a dimensão de Alegoria da Caverna que o texto tem. Claramente desenhado para ser um mito, cheio de personagens com nomes simbólicos (Morpheus, Neo, Trinity), cheio de citações a mitologias grega e judaico-cristã, o primeiro filme parece ser uma versão pós-moderna da metáfora platônica de que o homem é enganado pelos sentidos, a realidade está em outro plano e só o conhecimento da verdade pode libertá-lo. Neo representa uma espécie de guerreiro filosófico, que traz a verdade para o homem. E disso mesmo decorre a segunda dimensão: a atualidade estabeleceu um tipo de relação entre homem e técnica e com a imagem que tudo se tornou simulação.
E é nesse ponto que o filme estabeleceu seu elo mais forte com o presente. Os guerreiros que libertam o homem em muito se assemelham ao exército antiglobalização de nossos dias, aqueles militantes que utilizam o hackerismo e alta tecnologia criticada na globalização justamente para fazer frente à mundialização da cultura. Pois bem, Matrix Reloaded é justamente a ampliação dessa ligação com o presente e a redução da dimensão ontológica. Chega do sempre foi assim, importa mesmo é o é assim agora.
A opressão da máquina que oprime o homem e que impõe outra realidade é a opressão de uma cultura sobre o homem, como a militância antiglobalização quer demonstrar que o capital produz na atualidade. É curioso, por exemplo, que poucos dos lutadores sejam brancos de beleza greco-romana. Eles são um exército de excluídos, de minorias. São negros, orientais, latinos. O grande libertador, Morpheus, é negro. Libertador e crente religioso, praticamente um fundamentalista, aliás. Entretanto, a mesma história reservou para brancos, Neo e Trinity, papéis de quase divindades. E divindades que se colocam através do mito maior do individualismo capitalista: Neo é predestinado.
Mas o filme coloca um ponto de interrogação justamente no estatuto desta predestinação. A grande cena do filme, aquela que faz escapar da maçante pirotecnia estética com que o roteiro parece querer torturar o espectador em busca da montagem do quebra-cabeças conceitual do mito, é justamente sobre o papel de predestinação politizada, interessada.
Mas vamos por partes. Como espetáculo, já dissemos, o filme apresenta uma estrutura particularmente tediosa. Hiperdimensionou uma apreensão da lógica narrativa do videogame – o que remete para o pretexto que justifica todas as idiossincrasias visuais do filme, o fato de que ele se passa na verdade “no mundo virtual” ou em um ambiente “computacional”: é dividido em blocos de revelações, intermediadas por etapas de lutas, pelas quais Neo é obrigado a passar para “conquistar” a revelação seguinte. Mas se faltou sutileza aos roteiristas Wachowski e, repare-se no visual, faltou também capricho (os efeitos especiais nitidamente querem realizar mais do que podem), aos irmãos produtores de um patchwork filosófico, aqueles que desejam conseguir dar conta de nosso tempo com uma saga de science fiction, a capacidade de fazer metáforas e conexões com alguns dos mais ousados modelos filosóficos da atualidade se ampliou, embora por vezes se aproxime do monstro de Frankenstein conceitual.
Não se pode dizer que os moços sejam pensadores independentes. Não são. E nem que eles sejam inovadores nesse sentido. O trabalho deles está mais para um mapeamento, para uma gestão de elementos, um “agenciamento”. O uso do termo, particularmente querido ao filósofo francês Gilles Deleuze é proposital. Do primeiro episódio a seu “recarregamento”, Matrix migrou de Platão para Deleuze, de Alegoria da Caverna para
Matrix dava conta de uma dimensão ontológica. Ao afirmar que um dia as máquinas controlariam o homem e produziriam uma realidade imaginária na qual o homem, mergulhado, acreditaria viver sua normalidade, e que o real mesmo é diferente do que está diante dos sentidos, o filme falava na verdade de um presente em que o homem é já controlado pela máquina – o problema retorna neste segundo filme, no diálogo entre Neo e o conselheiro de Zyon diante das usinas da cidade – e que nossa realidade, esta que nos cerca, é mesmo ilusória. Não se trata de uma revelação ontológica completa, claro. Não significa que desde sempre a realidade é produzida em computadores. A dimensão do domínio é mais política – o filme remete o tempo todo para um discurso dos movimentos antiglobalização atuais.
Já em Reloaded, o que aparece é um contexto do que Deleuze chamou de controle – um sistema em que a própria intermediação do desejo é responsável pela dominação. É o que dá ao filme seu vigor possível. É para isto que ele pode ser proveitoso: como objeto justamente para dar noção de o quão o controle é um dado da realidade. Mas não de uma forma conspiratória e mirabolante e sim nas relações de poder que o jogo tecnológico – ligado em nosso tempo ao consumo – impõe. Nesse sentido, o próprio filme faz pensar sobre o cinema e sobre o estatuto da imagem, que se tornou mais um entorpecente do que uma possibilidade libertadora de conhecimento.
Como filme, aliás, Matrix Reloaded está mais para uma peça de consumo na aparência, com sua visualidade kitsch e seus excessos em todas as direções. Tudo é demais no filme. Mas apenas para corroborar a metáfora biológica que ambos os filmes sustentam (não é a tôa, por exemplo, que as máquinas se parecem com microorganismos), vale uma outra: o filme é como uma vacina, que traz em si o princípio ativo da doença. É preciso ser ministrado com cuidado, pois pode curar, mas, ao mesmo tempo, pode ser letal.
# MATRIX RELOADED
EUA, 2003
Direção e Roteiro: ANDY E LARRY WACHOWSKI
Produção: JOEL SILVER
Fotografia: BILL POPE
Montagem: ZACH STAENBERG
Música: DON DAVIS
Elenco: KEANU REEVES, LAURENCE FISHBURNE, CARRIE-ANNE MOSS, HUGO WEAVING, MONICA BELUCCI, GLORIA FOSTER
Duração: 138 min.
site: www.whatisthematrix.com