Voltando a Viver pode ser facilmente atacado, graças aos seus defeitos evidentes, ou melhor gritantes, mas o que está por de trás desses defeitos tampouco faz com que esta fita mereça o desprezo completo. Voltando é muitas coisas, entre elas mais uma estréia na direção de um astro hollywoodiano, Denzel Washington, que é também um grande ator (é sempre bom lembrar que as duas coisas nem sempre caminham juntas). Além disso, esta obra é baseado numa história real, e mostra nas telas mais um relacionamento entre psiquiatra e paciente.
O próprio Antwone Fisher roteirizou o filme, que conta a sua história de jovem negro marinheiro (na tela, o novato Derek Luke) filho de pais pobres (o pai morre assassinado antes de seu nascimento, a mãe vai em cana e o abandona mesmo depois de cumprir a pena) que depois de brigar muito com colegas, é levado para fazer tratamento psiquiátrico com um doutor também da Marinha, Jerome Davenport (o próprio Denzel).
Antes de partir para o filme propriamente dito é legal situarmos a obra, entre outros fatores, dentro do contexto daquilo que tem sido feito nos últimos anos por outros atores de Hollywood que passam para atrás das câmeras. A ampla maioria desses atores (e atrizes) parece apenas interessada em testar uma outro ramo de atividade cinematográfica sem muita intenção de construir um corpo de obras (ficam em um ou dois filmes), exceção feita à John Turturro e Tim Robbins, que em pouco tempo já dirigiram um número razoável de filmes. E claro, aos medalhões com décadas de carreira como o genial Clint Eastwood, Robert Redford e Warren Beatty, que pela extensão e condução da carreira (o primeiro muito mais que os outros dois, em todos os aspectos) realmente se tornaram diretores, construíram uma obra em paralelo ou simultaneamente à carreira de atores.
Muitos deles dirigem apenas com o interesse de mandarem em si mesmos na atuação, e sem o maior interesse por uma articulação estética, ou mesmo sem o conhecimento técnico necessário – hoje em dia é sabido como Dean Semler, diretor de fotografia de Dança com Lobos (90), dirigiu, fez efetivamente o filme nos aspectos técnicos, e que Kevin Costner só dizia à ele impressões gerais sobre o que queria; aliás, artigos variados afirmam que esse fato, o do diretor de fotografia carregar nas costas muitos atores-diretores, é mais comum do que se pensa.
Mais raros ainda são aqueles, como Sean Penn, que dirigem filmes em que eles mesmos não atuam, nem como protagonistas nem como coadjuvantes, sendo que Penn já realizou três (um trio de filmes extraordinários, de unidade temática e estilística pouco encontrada por aí).
O fato é que Denzel em Voltando transmite um sensação dupla ao longo do filme: que ele não tem ainda uma forma apurada de diretor (aí não há como sabemos se ele inclui ou exclui preparação técnica), mas que sabia o que queria nesse filme, e que o conduziu de verdade, ainda que sem experiência, com o entusiasmo e carinho claros, que a cadência dos planos e montagem de Voltando, segue a sua vontade .
Vem daí também uma vaga sensação de que o filme às vezes bóia um pouco, tem uns tempos mortos que não têm função significativa (como alguns tempos mortos de tantas obras têm); que como diretor de atores tem a generosidade de lidar bem com inexperiente Derek Luke (seguro, sem arroubos desnecessários), e que não parece, ele mesmo como intérprete, apenas interessado em atuar sem que ninguém lhe dê ordens, e sim em servir ao filme.
Aqui cabe analisar rapidamente a carreira de ator. O estilo Denzel de atuar é composto por uma espécie de naturalismo que não é naturalismo de verdade, esconde uma forma extremamente vigorosa, quase imperativa de se portar e mover (mesmo quando o personagem é frágil e mesmo assim adequada a quem ele está interpretando), de usar a linguagem do corpo, e que como brota dela uma espécie de autoridade comportamental forte, que acaba por ficar cheia de detalhes interessantes, e muitas vezes é bem melhor que uma composição muito estudada – nisso ele se parece com o gigante Gene Hackman, o que fez do duelo de interpretações de ambos na aventura submarina Maré Vermelha (95), uma bela experiência. Isso aparece bem em Dia de Treinamento (2001), que lhe deu um justo Oscar de ator.
Outra coisa a ser notada: ele tem um assinatura física bastante peculiar, e creio eu, absolutamente inconsciente, que porém, surge em vários filmes. Em momentos-chaves deles, o ator mexe uma ou duas vezes o queixo para trás, e deixa ele cair rapidamente sobre o peito, sacudindo de leve a cabeça (às vezes para trás, denotando uma procura por altivez na postura), tudo isso enquanto eriça de leve ambos os ombros, como se inconscientemente o gesto o preparasse para travar ou resolver algum embate emocional e/ou físico. Como veremos depois, é bastante significativo que isto ocorra de maneira clara em Voltando na última aparição do ator, e agora na hora de analisar propriamente o filme, o fato ganha contornos relevantes, em consonância com a mencionada maneira nada egoísta como ele atua no filme.
Filho de um pastor, ele mesmo um homem religioso, pai de família casado há um tempão, o ator agora diretor fez um filme de mensagem, sobre esperança, cheio de bons sentimentos, o que é óbvio a qualquer um que o assista. Talvez por isso mesmo, de forma involuntária (ou não, não há como compreender isso sem ler a autobiografia de Antwone), o apego ao legado do pai explique o sumiço na trama do filme, do pastor casado com a megera que cria Antwone, o que faz com que não saibamos o quão conivente este homem era com as torturas físicas e psicológicas que a mulher infligiu à Antwone e outros meninos. Como bom filme de bons sentimentos, Voltando procura fazer uma declaração de amor à vida, e à decência, e mostrando a vitória moral de Antwone por ele permanecer um ser humano digno mesmo depois de tanto sofrimento na vida real e ao longo de quase duas horas de narrativa.
É aí, perto do fim, depois de um monte de clichês que pela execução não cativam nem irritam, que o filme vive os piores momentos, sobretudo nos quinze minutos finais. Denzel comete um dos piores pecados de um artista: é literal quando não é necessário sê-lo, e pior, o é duas vezes em instantes muitos próximos de si, o que podemos afirmar que termina por criar como uma redundância infernal. Essas duas ocasiões são os discursos que explicitam o que qualquer espectador, crítico, cineasta, etc, não-imbecil por completo, conseguira notar, ou seja a já citada vitória moral de Antwone, o quão importante é o fato de ele ter vencido as adversidades - hoje em dia ele é escritor e roteirista com vários projetos-, mas não só, de como o comportamento dele, ao menos no filme, ajudou a fazer de seu psiquiatra Jerome uma pessoa melhor e um marido melhor.
O primeiro deles, o do próprio rapaz na porta da casa da mulher que o criou e frente também à outra mulher (então uma jovem), que abusou sexualmente dele quando ele era criança, é explícito até dizer chega, e depois o segundo, do psiquiatra/Denzel para o rapaz, dizendo como teve sua vida modificada por ele, acaba como momento mais irritante e tolo de todo o filme, e no qual a tal assinatura física do ator aparece discreta pelo enquadramento escolhido.
Mas alto lá: este exato momento, às portas do fim do filme, de maneira bem enviesada e casual acaba por metaforizar e desvendar não só o todo do filme, só que também a direção de um ator-diretor à luz do estilo de atuação do mesmo. Faz-se necessário que o psiquiatra mande esse papo-chorumela por motivos diretos, e compreende-se que ele o faça por outros indiretos. Diretamente, pois o roteiro mostra a amizade entre Antwone e Jerome fora do consultório e a simpatia sem segundas intenções da esposa de Jerome, Berta, pelo garoto, abandonando porém antes da cena do agradecimento do psiquiatra, qualquer menção no prosseguimento da trama, de uma boa influência de Antwone sobre Jerome enquanto marido. Indiretamente pela maneira como o ator-diretor estruturou o tom de seu filme, e aí tanto faz se de maneira pensada ou não.
Não só na maior parte dos casos no que se refere ao cinema de Hollywood, mas também nas outras indústrias de cinema popular mundo afora, a maneira como evolui o relacionamento entre paciente e médico da mente (seja ele/ela psiquiatra, psicólogo ou psicanalista) nas narrativas cinematográficas, segue uma partitura muito parecida. Primeiro ambos se estranham, depois aos poucos cria-se uma intimidade crescente e meio forçosa entre eles, sendo que os depoimentos em forma de flashbacks dos pacientes vão ganhando cargas dramáticas até chegar aos grandes, quase operísticos momentos, em que o paciente revela/relembra um instante muito trágico e traumático de sua existência (currou, foi currado, a mãe matou o pai, a avó abusava dele e tinha um caso com o tio, etc). Corta para o ator/atriz que interpreta o doutor (a) com um intenso e enorme olhar de desolação com a gravidade do fato e de piedade para com seu paciente. Isto, graças à Deus, não acontece em Voltando a viver. É o tom, esta é a palavra-chave, que faz desse filme piegas e defeituoso, cinema de certo interesse, e para além de sua mensagem (o que não o faz válido como realização artística, e sim por seu valor humanitário), merecedor de ser visto com atenção.
A sucessão de fatos tristes que Antwone revela, não provoca nas cenas entre ele e Jerome, momento de histerias, explosão emocional desarticulada e apelativa, e olhares arregalado de espanto do médico, como acontece em tantas outras fitas sobre relação entre pacientes e psiquiatras. Aparece somente a angústia necessária, nada de muito vulgar. O que aparece sim, é uma certa candura do Denzel Washington-diretor que está em sintonia com o Denzel Washington-ator, que ao longo da carreira como intérprete projeta uma mistura de vigor com serenidade e auto-controle que cativa.
Eis o que Voltando tem de melhor, a felicidade de não ressaltar seus chavões apelativos através de uma forma apelativa, e sim suavizá-los de uma maneira que lhes garanta algum interesse, sobretudo em comparação com a carreira prévia de seu diretor. Faltou dizer que a grande interpretação deste filme é de Viola Davis (Solaris, Longe do Paraíso) que aparece perto do fim como a mãe, durante poucos minutos e com quatro ou cinco falas, mas com uma expressão tristonha muito forte. Se o, podemos assim dizer, triunfalismo cândido cheio de bons sentimentos de Voltando a Viver surge numa realização alquebrada, e que não permite antever como será o prolongamento da carreira do ator como diretor, não há motivos para não ver a próxima obra de Denzel Washington como cineasta com cuidado e atenção.
# VOLTANDO A VIVER (ANTWONE FISHER)
EUA, 2003
Direção: DENZEL WASHINGTON
Roteiro: ANTWONE FISHER
Produção: TODD BLACK, ANTWONE FISHER, RANDA HAINES, NANCY PALOIAN.
Fotografia: PHILLIPE ROUSSELOT
Montagem: CONRAD BUFF IV
Música: MYCHAEL DANNA
Elenco: DEREK LUKE, DENZEL WASHINGTON, JOY BRYANT, NOVELLA NELSON, VIOLA DAVIS, SALLI RICHARDSONN.
Duração: 120 min
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