“Eu passei a maior parte da minha vida querendo ser outra pessoa”. De fato, Máiquel – protagonista de O Homem Do Ano , filme de José Henrique Fonseca diretamente inspirado no livro O Matador , de Patricia Melo – parece inconformado diante da distância entre o que gostaria de ser e aquilo que se tornou, entre o que sente e a imagem que vê refletida no espelho. Muda a imagem pintando o cabelo e sua vida se transforma, passando de cidadão comum a matador ocasional e depois a chefão do pedaço. Mas ele não se satisfaz. “Eu quero ser um homem normal, ter uma vida normal como o resto do mundo”, diz, já de posse de sua “nova condição” e surpreso diante da inesperada popularidade que ganha depois de assassinar, num ímpeto, um indesejado bandido das redondezas.
O Homem Do Ano mostra a trajetória acidentada de um sujeito que acaba se deixando levar impunemente pela vida, aceitando o que lhe é oferecido mesmo suspeitando não estar diante do objeto de seu desejo. Aceita o posto de gângster, tirando partido da situação a partir de um dado momento, um casamento sustentado por uma gravidez e uma Lolita de plantão que bate à sua porta. Paga um preço alto pela cura de uma dor de dente que até então não passava, cedendo a manipulação de um dentista-mafioso e seus comparsas como se não tivesse responsabilidade sobre a construção do seu próprio destino. A conclusão é inevitável: “se deixar a vida vai sozinha. Mas a gente faz da vida o que quer. Cada um escolhe a sua sina”.
Sem reconhecer como suas as palavras que emite (impressão evidenciada no discurso do “homem do ano”), Máiquel fica relegado a condição de porta-voz de textos alheios. Mas se o problema dele está em não encontrar uma identidade própria, o do filme de José Henrique Fonseca reside no fato de assumir uma “identidade coletiva” ao se filiar a um formato cinematográfico calcado em determinados ingredientes – utilização da gramática do thriller, fotografia estilizada – que vêm conferindo uma impessoalidade a uma parcela do cinema brasileiro atual. O Homem Do Ano não segue à risca estes requisitos (conta com um andamento mais lento, por exemplo), mas coloca o espectador frente a uma realidade artificializada, “excessivamente cinematográfica”. Há ainda um fator muito importante que influencia na obtenção deste resultado: a falta de relação entre os cineastas e os contextos que abordam. É difícil detectar uma conexão entre José Henrique e a Baixada Fluminense.
Importante dizer: o quadro descrito acima diz respeito a uma generalização em relação a uma vertente do cinema nacional pós-retomada e nem sempre os valores de produção surgem divorciados do conteúdo. Uma vertente, porém, cujo esforço parece estar concentrado na busca por um elo com a lógica do produto vencedor, expresso, sobretudo, na impressão de uma estética-padrão capaz de seduzir uma ampla faixa de espectadores e de (supostamente, neste caso) sinalizar uma veia autoral. Algo que soa como uma espécie de paradoxo diante de um filme como O Homem Do Ano , que procura questionar conceitos éticos deformados ao longo do tempo.
O roteiro, assinado pelo escritor Rubem Fonseca, espelha o descompasso entre as amplas possibilidades de desenvolvimento do enredo e o resultado alcançado, conservando, por um lado, qualidades originais – acrescidas de um sugestivo tom rodrigueano em frases como “Eu não sei como é a alma de um bandido; mas a alma de um homem bom é um inferno” e “Não ficava com vergonha de abrir a minha boca para ele” (lembrando que José Henrique assinou o curta “Cachorro”, um dos integrantes do longa “Traição”, escorado em Nelson Rodrigues) – mas revelando, por outro, dificuldade em desenvolver as personagens (em especial, a de Natália Lage) de maneira crível.
O HOMEM DO ANO
Brasil, 2003
Direção: JOSÉ HENRIQUE FONSECA
Produção: CONSPIRAÇÃO FILMES
Roteiro: RUBEM FONSECA
Fotografia: BRENO SILVEIRA
Trilha Sonora: DADO VILLA LOBOS
Direção De Arte: TONI VANZOLINI
Montagem: SÉRGIO MEKLER
Elenco: MURILO BENÍCIO, CLAUDIA ABREU, NATÁLIA LAGE, JORGE DÓRIA, PAULO CÉZAR PEREIO, CARLO MOSSY, AGILDO RIBEIRO, MARILU BUENO E VIC MILITELLO
Duração: 111 minutos