Críticas


HOMEM DO ANO, O

De: JOSÉ HENRIQUE FONSECA
Com: MURILO BENÍCIO, CLAUDIA ABREU, NATÁLIA LAGE
09.08.2003
Por Marcelo Janot
SAPATO VELHO NÃO FAZ COCA-COLA BOA

Um dos melhores momentos do livro O Matador, de Patrícia Melo, é o capítulo em que Máiquel vai jantar na casa do Dr. Carvalho, o grã-fino que o contrata para exterminar as “pragas da sociedade”. O ritual do banquete é descrito com detalhes, ao mesmo tempo em que o Dr. Carvalho lhe faz as propostas de trabalho sujo. Máiquel está profundamente envergonhado com seu par de sapatos velhos, contrastando com os sapatos caros dos demais. Ele é tão estranho àquele universo que dali a pouco estará no banheiro vomitando.



“(...)Vomitei todo o frango com creme de leite, as batatas, todo o vinho, o abacaxi tropical, tudo. Vomitei tudo. Vomitei pensando no dinheiro que eu ia ganhar se matasse o negro. Eu estava desempregado. Pragas. Eu estava sem dinheiro nenhum, eu precisava daquele dinheiro. Negros. Vomitei pensando no que eu poderia comprar com aquele dinheiro. Sapatos.(...)”(O Matador, pág. 64)



A obsessão com seu par de sapatos é o elemento que melhor define o personagem Máiquel no livro. Já no filme O Homem do Ano, de José Henrique Fonseca, baseado no livro de Patrícia Melo, a reflexão a partir dos sapatos jamais é usada para ilustrar o contraste entre os dois mundos que se apresentam à frente de Máiquel e o seu conflito interior. O roteiro do filme não só abriu mão da cena do banquete como também de qualquer cena envolvendo os sapatos de Máiquel. Em compensação, a toda hora Máiquel abre uma lata de Coca-Cola. O vício do personagem por Coca-Cola é uma exclusividade do filme, não existe no livro.



O contraste entre o sapato e a Coca-Cola é o que melhor ilustra a diferença entre as duas obras. Enquanto no livro o sapato é o passaporte para um mundo onde a qualquer momento você pode pisar na merda, no filme a Coca-Cola não serve para – desculpe o termo – merda nenhuma. Se encararmos O Homem do Ano como um comercial de longa-metragem com o slogan “O Sabor de Vencer” e toques de existencialismo “diet” (ou “light”, se preferir), aí sim teremos encontrado alguma desculpa para tanta Coca-Cola em cena.



Claro que a proposta não é essa, mas aquele close na gotinha de novalgina sendo derramada dentro da latinha de Coca...ai, aquilo dói mais em quem está assistindo ao filme com olhar crítico do que a dor de dente de Máiquel. São tantos os detalhes exibicionistas, que o espectador vai sendo gradativamente afastado daquele universo ao longo da projeção. Fica difícil acreditar na transformação repentina da personagem de Natália Lage, fica difícil entender pra que Mariana Ximenes está em cena, já que seu personagem, importante no livro, foi reduzido a um mero momento “lolita”. Também não dá pra acreditar que o agitador cultural Perfeito Fortuna e o cantor Paulinho Moska possam pertencer àquele universo barra-pesada da Baixada Fluminense. Quanto à risível participação do diretor José Henrique Fonseca atuando como um vendedor de armas, ela é o espelho (e bota espelho nisso) desse exibicionismo latente que compromete o filme.



Com uma larga bagagem em videoclipe e publicidade, não dá pra dizer que Fonseca não saiba filmar, que Breno Silveira não seja um tremendo fotógrafo, que Sérgio Mekler não seja um montador competente e Dado Villa-Lobos um ótimo compositor. E principalmente que Murilo Benício não seja um baita ator. A cena em que Máiquel e Suel se enfrentam no bar, primorosa, é o melhor exemplo disso, tem muito mais tensão do que no livro.



O problema é que tanto talento está a serviço de uma estética que acaba por ofuscar o que o filme deveria ter de mais relevante, algo que o distinguisse da montanha de clichês com os quais ele flerta: a inserção desse cinema de gênero na realidade brasileira. Ao invés disso, Fonseca parece mais preocupado em mostrar que consegue imitar direitinho Tarantino e provocar risos na cena em que o sujeito tem seus miolos estourados repentinamente dentro do carro, com o sangue espirrando no vidro. Ou em construir sua saga de ascensão e queda como num Scarface, num Cassino ou Os Bons Companheiros tupiniquins. Ou ainda mostrar como tem bom gosto musical inserindo videoclipes deslocados de “As Dores do Mundo” (Hyldon) e “Matador” (Los Fabulosos Cadilacs).



Para piorar, o roteiro de Rubem Fonseca (ele mesmo, o genial escritor e pai de José Henrique) transformou o livro numa filme sem clímax no fim, um pecado gravíssimo em se tratando de uma obra calcada nos clichês do filme policial. Conclusão: O Homem do Ano é um tremendo desperdício de talentos, um equívoco quase completo que se perde no exibicionismo, e apesar de alguns bons momentos, não se justifica.



O HOMEM DO ANO

Brasil, 2003

Direção: JOSÉ HENRIQUE FONSECA

Produção: CONSPIRAÇÃO FILMES

Roteiro: RUBEM FONSECA

Fotografia: BRENO SILVEIRA

Trilha Sonora: DADO VILLA LOBOS

Direção De Arte: TONI VANZOLINI

Montagem: SÉRGIO MEKLER

Elenco: MURILO BENÍCIO, CLAUDIA ABREU, NATÁLIA LAGE, JORGE DÓRIA, PAULO CÉZAR PEREIO, CARLO MOSSY, AGILDO RIBEIRO, MARILU BUENO E VIC MILITELLO

Duração: 111 minutos

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