Há muito tempo que filmes vêm estampando o aviso “baseado em uma história real” nos créditos iniciais como se isso fosse garantia de qualidade, e não um sintoma da crise criativa dos roteiristas, especialmente em Hollywood. Como criatividade nunca foi um problema para Pedro Almodóvar, ele inicia “Os Amantes Passageiros” com o aviso de que tudo o que o espectador verá é pura ficção.
Nem tanto. Por detrás da aparência escrachada que remete ao estilo cômico exagerado de seus primeiros filmes encontram-se vários motivos pra se levar o filme bastante a sério – e nem precisamos falar que a fictícia companhia aérea espanhola do filme seria uma referencia à Iberia (um terror para quem precisa viajar para Europa por tarifas um pouco mais em conta), já que essa é uma das analogias menos explícitas.
O que vemos no vôo tresloucado de Almodóvar é uma duríssima crítica à Espanha atual. Sem necessidade de mencionar de maneira literal a crise em que o país se encontra, temos uma classe econômica que é dopada para suportar o vôo sem rumo de uma aeronave quebrada, condenada a rodar em círculos. Na classe executiva, uma série de tipos, de um banqueiro falido a uma veterana dominatrix habituada a prestar serviço a poderosos, ao lado de um galã de novelas mexicanas e uma pós-balzaca ansiosa por perder a virgindade, encontra-se um extrato interessante de uma suposta “elite”. E a hipocrisia é o que dá o tom na maioria das relações humanas, incluindo aí os comissários gays e os pilotos enrustidos.
O acerto de Almodóvar está no tom encontrado pra tratar de tudo isso. Longe da sofisticação formal do que se convencionou chamar de sua fase “madura” - os melodramas como “Fale com Ela” e “Tudo Sobre Minha Mãe” - ele volta sem medo e pudores aos diálogos de forte conteúdo sexual de seus primeiros filmes, sem qualquer preocupação no sentido de não soar exagerado ou de não resvalar no mau gosto. Assim, o espectador precisa estar preparado para ouvir diálogos tais como:
- Queria fazer uma chamada.
- Uma mamada?
Funciona? Lógico que sim. Há vários momentos engraçadíssimos, em parte graças ao talento de uma trupe almodovariana que inclui Cecilia Roth, Lola Dueñas e sobretudo Javier Cámara na pele do comissário chefe Joserra (que fica mais engraçado ainda quando volta e meia temos a impressão de ouvir “José Serra”). Sem a pretensão de fazer a comédia mais engraçada de todos os tempos, “Os Amantes Passageiros” ainda assim sofre com algumas turbulências. Nota-se por vezes um certo desleixo no desenrolar da trama, com o ritmo caindo vertiginosamente. Mas nada que apague a boa impressão deixada em quem conseguir enxergar um interessante manifesto político por detrás da divertida capa “alienante”. Lembrando que o filme começa com uma versão de “Für Elise” em ritmo de cumbia peruana psicodélica, passa por um momento musical gay ao som de “I’m so excited”, das Pointer Sisters, e termina com o rock indie inglês do Metronomy, “Os Amantes Passageiros” veio ao mundo para confundir mesmo, daí tantas opiniões conflitantes a seu respeito.