Em vários aspectos, Lisbela e o Prisioneiro segue a trilha – e promete repetir o êxito de bilheteria - do longa-metragem anterior de Guel Arraes, O Auto da Compadecida. Ambos têm em comum muitas qualidades e um problema. São baseados em textos de autores populares (Ariano Suassuna e Osman Lins), têm roteiros excelentes e contam com um elenco impecável, favorecido pelo desenho deliberadamente exagerado dos personagens. Somem-se uma trilha sonora encabeçada por Caetano Veloso e fotografia e montagens extremamente funcionais, e a fórmula do sucesso é garantida. De fato, Lisbela conquista a platéia desde as primeiras cenas, e é daqueles filmes que fazem o espectador deixar a sala de projeção com um sorriso embevecido no rosto.
Lisbela e o Prisioneiro é um filme, por assim dizer, transparente, e seus méritos são tão evidentes que continuar a enumerá-los seria chover no molhado. Mais útil parece ser tomar o filme como ponto de partida para duas questões, que remetem ao problema citado acima e que no fundo estão entrelaçadas. Como o Auto, Lisbela foi um projeto inicialmente concebido para a televisão - o próprio Guel dirigiu o especial da Rede Globo em 1993, e mais tarde a versão teatral da mesma história, em duas ocasiões. Televisão, teatro, cinema: essa permeabilidade sugere uma incômoda indistinção entre os suportes, como se cada um não tivesse sua própria linguagem, exigências específicas etc. É claro que qualquer obra pode ter adaptações bem-sucedidas em diferentes meios, mas no caso de Lisbela, o filme, a impressão que se tem é que a passagem da telinha para a telona foi uma mera transposição, e não uma reinvenção. A brincadeira metalingüística com que Guel Arraes começa e termina o filme não basta para transformar em cinema algo geneticamente televisivo.
A contaminação televisiva é inegável, tornando o filme refém (prisioneiro?) de uma linguagem alheia. Ser televisivo é um problema? Não necessariamente - e de forma alguma, se tomarmos o provável sucesso do filme como critério. Mas mesmo o sucesso pode implicar uma armadilha, e entra aqui a segunda questão. Lisbela e o prisioneiro vem sendo chamado (equivocadamente,
a meu ver) de blockbuster nacional. Ou seja, é um filme que não se esgota em si mesmo, mas que aponta um caminho, um compromisso, um projeto, um formato: o de filmes leves, engraçados, românticos, ágeis, palatáveis, bem produzidos, com rostos conhecidos, com ritmo conhecido, predestinados para o sucesso, e até certo ponto descartáveis. Mas é este o único rumo que deve tomar o cinema brasileiro? Que espaço sobrará para a pesquisa e a invenção, para os filmes adultos, que questionam e fazem refletir sobre o mundo? Ou devemos nos render de vez ao mercado como único valor?
# LISBELA E O PRISIONEIRO
Brasil, 2003
Direção: GUEL ARRAES
Roteiro: GUEL ARRAES, JORGE FURTADO E PEDRO CARDOSO
Produção: PAULA LAVIGNE
Fotografia: ULI BURTIN
Montagem: PAULO HENRIQUE FARIAS
Música: JOÃO FALCÃO E ANDRÉ MORAES
Elenco: SELTON MELLO, DEBORA FALABELLA, MARCO NANINI, VIRGINIA CAVENDISH, HELOISA PERISSÉ E BRUNO GARCIA
Duração: 105 min.