Críticas


WALTER HUGO KHOURI E UM DEPOIMENTO PESSOAL

16.09.2003
Por L.G Leão
WALTER HUGO KHOURI E UM DEPOIMENTO PESSOAL

“A morte é a única banalidade que se renova: ocorre todo dia e sempre surpreende”. Palavras judiciosas do ensaísta Mário da Silva Brito, em artigo publicado há tempos. O desaparecimento de Walter Hugo Khouri, aos 74 anos incompletos, surpreendeu não só familiares, amigos e jornalistas, mas também o núcleo de cineastas, publicitários e artistas com quem costumeiramente se reunia no restaurante mito da Rua Nestor Pestana, de São Paulo, o velho Gigetto, no qual tive o privilégio de jantar a convite de Khouri.



Como bem salientou Ignácio de Loyola Brandão em crônica nostálgica, o Gigetto era o ponto de encontro, a ligação, a união das classes cinematográficas, teatral e televisiva. Lá se debatiam questões relevantes concernentes a cinema, teatro, literatura e TV, enquanto profissionais e amadores se congregavam num sadio intercâmbio de idéias, como se fossem todos uma só e unida família. Mesmo nas eventuais divergências, todos primavam pela lealdade e pela aceitação do dissenso – escola de democracia, da boa convivência dos contrários. Aqui e ali alguém se exaltava ou radicalizava seus pontos-de-vista e lá estava Khouri ou algum outro para trazer subsídios e acalmar os ânimos.



Mesmo considerando o velho refrão segundo o qual o cemitério está cheio de insubstituíveis, a morte de WHK me pareceu perda irreparável para o cinema nacional, mesmo relativizando o adjetivo. O axioma atribuído a Jean-Jacques Rousseau, “Tout passe, tout lasse, tout casse”, às vezes lembrado por Khouri em nossas conversas ao longo dos anos, vem bem a calhar, pois denota a transitoriedade das coisas, a fugacidade da vida, a idéia do homem como um ser para a morte – a angústia vital da qual nos falam os psicanalistas ou as figuras ímpares de Kafka ou de Epicuro diante do absurdo da existência. Ninguém se conforma com a morte. Senti a perda de Khouri como se sente a ausência de um tio mais velho e amigo sempre pronto a corrigir-nos os rumos ou ensinar-nos algo novo de sua experiência.



O nome de WHK chamou-me atenção quando comecei a ler suas críticas de cinema no “O ESP” e no boletim da Mostra do Cinema Sueco, seja comentando Sede de Paixões (Torst), de Ingmar Bergman (1949), seja analisando as preocupações mais profundas do realizador escandinavo. Como cineasta, WHK me surpreendeu a partir de Estranho Encontro (1958), quando pela primeira vez assisti a um filme brasileiro diferente dos padrões de incipiência técnica daquela década, pois só iria ver Gigante de Pedra (1953), anos depois. Tampouco vi Fronteiras do Inferno, do mesmo ano, porque a cópia original se perdeu por motivos até hoje não esclarecidos.

Percebi, com Estranho Encontro, estar diante de um cineasta conhecedor do seu métier, seja pela qualidade da fotografia na recriação daquele mundo ficcional, seja pela forma de movimentar a câmara nos espaços exíguos, notadamente quando a utilizava para aproximar-se da perna mecânica deixada no canto do quarto, ou quando captava expressões fisionômicas adequadas ao drama vivido por Mário Sérgio e Andrea Bayard – tudo enriquecido pela valorização dos silêncios e pelo jogo de sombras na noite. Com Na Garganta do Diabo (1959), Khouri já ganhava o prêmio maior do Festival de Mar del Plata, para ele cidade de muitos encantos, onde charmosas damas argentinas despertavam a avidez óptica de brasileiros e os cassinos sugeriam um terceiro mundo em pleno desenvolvimento.



Passei a admirar o cineasta, a acompanhar sua trajetória e a rever seus filmes (nem sempre merecedores de encômios, diga-se de passagem), todos válidos pela qualidade técnica, pelo estilo e pela temática urbana da qual emergiam a incomunicabilidade humana, a solidão da metrópole, os desencontros do amor, com a mulher como o eterno motivo (o sexo não é tudo mas está em tudo, repetia Khouri), e as transformações operadas pelo tempo e com as quais as pessoas mudam, morrem, e as amizades se esgotam...



Seguiram-se-lhe A Ilha (1962), e uma audaz incursão erótica, Noite Vazia (1964), êxito bilhetérico depois de perseguido e interditado por uma censura caolha. As críticas favoráveis animaram WHK a concorrer à Palma de Ouro em Cannes; mesmo não conseguindo, deixou ali sua marca pessoal como “regisseur” junto a vários comentaristas estrangeiros. O segundo episódio de As Cariocas foi um tropeço, segundo ele mesmo, mas Corpo Ardente (1966) e As Amorosas (1968) foram bem recebidos. Após esses resultados, WHK decidiu levantar fundos e investir suas economias com seu irmão William para assumir o controle e o patrimônio dos estúdios da Vera Cruz. Louvável mas inútil tentativa de injetar-lhe sangue novo mediante coproduções com o estrangeiro, período durante o qual, como indicam os registros, ajudou vários cineastas em seus misteres, como Arnaldo Jabor, Anselmo Duarte e Roberto Santos. As dificuldades financeiras e aborrecimentos decorrentes de desentendimentos com o tripé produtores + distribuidores + exibidores acabaram por desanimar Khouri e a tornar inviáveis a recuperação da Vera Cruz, onde também já estivera o cineasta brasileiro de maior renome no exterior, Alberto Cavalcanti, de destacadas atuações na Inglaterra e na França.



De volta à liça, WHK passou a realizar filmes acentuadamente eróticos, projetando a mulher brasileira na pele de belas atrizes e atuando para produtores como Enzo Barone, Galante & Palácios. Dessa safra, lembro-me de O Palácio dos Anjos (1970), As Deusas (1972), O Último Êxtase (1973), O Anjo da Morte (1974), O Desejo (1975), Paixão e Sombras (1977), As Filhas do Fogo (1978). Em O Prisioneiro do Sexo (1979) e Convite ao Prazer (1980) é de lamentar-se a presença do canastrão Roberto Maia: só mesmo os incitamentos da amizade (ou de ajuda ao amigo) levariam WHK a colocá-lo como protagonista desses filmes, motivo pelo qual Khouri foi chamado por críticos intolerantes de “cineasta pornô chic”...



Em Eros, o Deus do Amor (1981), WHK fez interessante experiência com a câmara subjetiva, na qual o personagem central nunca é visto, mas sempre chamado de Marcelo, espécie de alter-ego do diretor, conforme alguns críticos. Com Massaini Neto, Khouri fez Amor Estranho Amor, um dos seus filmes cinematograficamente mais consistentes: Walter Foster revisita o seu passado de garoto entregue a um bordel de luxo e se recorda haver ficado aturdido com a visão da nudez de Xuxa oferecida como presente a um político corrupto da ditadura Vargas. Os planos do final, com a saída da mansão, vista de dentro do carro em movimento, sugestivos de uma nostalgia do tempo volátil, compõem um dos momentos de alta hierarquia do cinema de WHK.



No já citado As Deusas, outro de seus filmes bem acabados, WHK penetra no universo psicanalítico de um triângulo amoroso, um homem e duas mulheres, reminiscente, “mutatis mutandis”, do Gamiani, de Alfred de Musset. Louvei, à época, sua tentativa de captar a alma humana via ritmo lento, introspectivo, com primeiros planos repetidos, os quais pareciam sufocar os amantes ou arrancar deles tudo quanto seus rostos procuravam esconder ou demonstrar. Em As Filhas do Fogo rompe com a unidade espácio-temporal e brinda o cinéfilo com expressiva interação do passado e do presente, das sombras e da claridade, dos vivos e dos mortos. Como lembrou Rodrigo Fonseca em louvável síntese, WHK dirigia, cenarizava, produzia e às vezes até operava a câmara sob o pseudônimo de Rupert Khouri...



Realizou ainda Amor Voraz (1984), Eu (1986) e Forever (1993), subordinados ao tema tabu do incesto e pelos quais muitos analistas não o perdoaram. É realmente incompreensível a insistência de WHK, praticamente repetindo nestes dois últimos a mesma cena da festa com a presença de pai e filha juntos e... apaixonados. Manchas sob o sol...



Conheci pessoalmente WHK em 1983, quando veio até Fortaleza para rodar um filmete publicitário do BNB durante a profícua gestão de Camillo Calazans. Estava eu em meio à rotina no edifício-sede, quando recebi chamado do amigo Francisco Ribeiro, então à frente do setor de RP, para descer dois andares e falar com alguém desejoso de conhecer-me. Quem seria? Desça e venha ver-me, disse-me. Desci e logo ao abrir a porta identifiquei WHK a distância, cabelos brancos, suéter azul-escuro. Não pude conter três palavras: Walter Hugo Khouri!, seguindo-se forte abraço de velhos conhecidos. Em verdade, interessou-se em conhecer-me porque lera a relação dos melhores do ano publicada em jornal local e lá estavam dois filmes seus incluídos na lista deste escriba. “Quem é este temerário a render-me tal homenagem?”, havia indagado antes. Esse encontro inesperado foi o primeiro passo para sólida amizade, “recente mas profunda”, palavras dele mesmo quando me presenteou com um disco da trilha sonora de Eros. Mostrei-lhe depois comentários meus sobre alguns de seus filmes de minha predileção e isso estabeleceu um “rapport” entre nós.



Walter Hugo Khouri foi injustamente chamado de “alienado burguês”, de pretensioso Bergman brasileiro, mero aprendiz de Antonioni, apólogo do vazio. Nem todos os filmes de WHK, é claro, são elogiáveis, mas o conjunto de sua obra virou objeto de estudo estilístico em universidades brasileiras. Para quem não sabe, WHK era homem culto, formado em Filosofia, estudioso de literatura e psicanálise e da teoria geral dos signos de Peirce, sugerida pelos livros do mestre Décio Pignatari. Conhecia música como poucos, de clássicos ao “cool jazz” de Lester Young, o “Pres”, de Chet Baker e Gerry Mulligan. Admirador de Billie Holiday, cultivava a Bossa-Nova ou o samba-jazz e as tangatas do grande Piazzolla. Mas era eclético e, em Amor Estranho Amor, incluiu parcialmente antigos êxitos de Francisco Alves e Orlando Silva.



Poucos sabem, mas WHK era ainda um fotógrafo em P&B de mão cheia – tal como Kubrick o foi – e tive o privilégio de repassar alguns dos seus álbuns com magníficas composições e contrastes de “chiaroschuro” e até impressões de “trompe l’oeil” em interiores. Se a fotografia procura captar a expressividade profunda do modelo, então a arte fotográfica de Khouri pode ser um padrão de excelência. Trocamos várias correspondências, onde explicava sua visão de cinema com muita lucidez. “Uma forma de fracassar”, repetia, “é querer contentar a todos; uns dizem que estou sempre fazendo o mesmo filme, à moda Fellini; se mudo constantemente o estilo e a temática, dizem que não tenho unidade, que meu universo cinematográfico é caótico...”.



WHK, descrente de um “turismo além-túmulo”, transcreveu-me duma feita um trecho instigante de Proust: “Desejamos apaixonadamente que haja uma outra vida, onde sejamos iguais ao que somos aqui neste mundo. Mas não refletimos que, mesmo sem esperar a outra vida, nesta daqui, no fim de alguns anos, nos tornamos infiéis ao que fomos, ao que desejamos imortalmente permanecer (...) Mas então o que significa essa imortalidade da alma, de que o filósofo norueguês afirmava a realidade? O ser que serei após a minha morte não mais tem razões para lembrar-se do homem que sou desde o meu nascimento, como este não se recorda do que fui antes de nascer”...

Paramos por aqui.



L.G. DE MIRANDA LEÃO é professor universitário, crítico de cinema e um dos pilares do Clube de Cinema do Ceará.

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