Críticas


CAPITÃO PHILLIPS

De: PAUL GREENGRASS
Com: TOM HANKS, BARKHAD ABDI, CATHERINE KEENER
11.11.2013
Por Marcelo Janot
Por detrás do entretenimento de alta qualidade há soluções eticamente questionáveis

(contém spoilers)

“Capitão Phillips” oferece o que a maioria esmagadora dos espectadores espera de uma superprodução hollywoodiana, transportando-os para dentro de uma aventura dramática tecnicamente impecável, costurada através de narrativa competente. Melhor ainda, para o espectador que quer se sentir na pele do herói, se este for vivido por Tom Hanks, com sua infalível cara de homem comum, em mais uma excelente performance. Especialmente porque “Capitão Phillips” é baseado em história verídica, e isso também é ressaltado através da escolha de Paul Greengrass como diretor, reconhecido pela pegada documental de filmes como “Domingo Sangrento” e “Vôo United 93”.

A incrível história do capitão que enfrentou praticamente sozinho um grupo de piratas somalis fortemente armados é, portanto, um prato cheio para que os americanos vendam para o mundo a imagem de que, mesmo com toda a crise que noticiam por aí, o "império" não se abala, pois nada supera o heroísmo do self made man que não foge ao seu posto de liderança. Os americanos, especialmente através de seu cinema, sempre fizeram questão de lembrar ao mundo que o capitão é sempre o último a abandonar o navio (real ou metafórico) – se o obstáculo não for um gigantesco iceberg, ele saberá que poderá contar com toda a eficiência do Estado para vir em seu socorro, mesmo em distantes mares internacionais.

O roteiro de “Capitão Phillips” foi cuidadosamente confeccionado para que não restassem dúvidas sobre a existência de bons e maus, heróis e vilões, entre os personagens. Seu maniqueísmo despudorado serve aos propósitos ideológicos propagandistas mencionados no parágrafo anterior. Desde o início somos apresentados ao que acontece nos dois lados: no lado bom, o navio cargueiro que exibe patrioticamente a bandeira americana no topo do mastro parte rumo a uma missão humanitária em um desses países africanos permanentemente em guerra, levando comida, água potável e outros mantimentos. Já no lado dos maus, vemos piratas somalis sendo recrutados em uma praia como se escolhessem os participantes de uma pelada futebolística – a ideia de improviso é reforçada quando se discute a necessidade de um segurança a bordo das pequenas embarcações deles, e o escolhido para o posto tem menos músculos que a maioria das musas do carnaval brasileiro.

Os Davis subnutridos com cara de mau conseguem invadir o território do Golias ianque em alto mar e pedem alguns milhões de dólares em troca dos reféns. O que os levaram a esse caminho? Em que ambiente cresceram? Quais suas histórias de vida? Não há brechas narrativas para isso quando se trata de humanizar a bandidagem. O privilégio cabe ao personagem de Tom Hanks – é ele que vemos ao lado da família no início do filme, e é para esse reencontro feliz que o espectador deve torcer, seja qual for a solução encontrada para dar cabo daqueles negros raquíticos maus como o diabo.

Se em algum momento ainda existia uma pequena possibilidade de enxergá-los como seres humanos, seja através do sequestrador que se mostra mais sensível ao discurso de Phillips ou num breve discurso do líder dos piratas contra a falta de alternativas, isso logo será rebatido quando, após um momento de violência, Tom Hanks enfurecido grita: “VOCÊ NÃO É PESCADOR!”. Se Hanks personifica o Super Herói que habita o imaginário coletivo, com direito a uma performance subaquática de causar inveja em Namor, o Príncipe Submarino, o ótimo ator Barkhad Abdi, na pele do pirata Muse, personifica o inimigo a ser batido, como se a sua prisão ou morte significasse a solução para todos os males que afligem os cidadãos de bem. É uma lógica de videogame tratada com realismo pericial pela câmera tremida de Greengrass e pela edição cirúrgica. Enquanto as negociações avançam e os somalis se vêem cada vez mais acuados pelo arsenal de guerra americano montado para o resgate, o espectador brasileiro poderá lembrar do fatídico sequestro do ônibus 174 como mostrado ao vivo na TV e no documentário de José Padilha – qualquer semelhança, até mesmo física, entre Muse e Sandro Nascimento, o sequestrador do ônibus, terá sido mera coincidência?

Há de se ter esperança de que as plateias consigam enxergar um pouco além do entretenimento de altíssima qualidade, pois se “Capitão Phillips” se propõe a uma fiel reprodução da realidade, suas soluções eticamente questionáveis devem ser tratadas com cuidado crítico, e não com mero deslumbre pela forma.

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Outros comentários
    947
  • Francisco Viana
    17.11.2013 às 12:50

    Muito bem lembrado, Janot. Por vezes, acho que a problemática de como se representa o outro é embotada pela beleza e a eficiência no uso da linguagem.
  • 991
  • Claudia M de Oliveira
    24.11.2013 às 18:41

    ótimo texto, Janot, como sempre! Porém, acho que a realidade é pior do que o filme mostra.
  • 1101
  • Frederico Krueger
    28.12.2013 às 22:47

    O filme dinamarquês "Hijacking", tambem lançado nesse ano, mostra a questao da pirataria com mais realismo.
    • 1110
    • Marcelo Janot
      30.12.2013 às 19:45

      Bem lembrado, Frederico. "Hijacking" é excelente, e mais realista mesmo tendo custado infinitamente menos que "Capitão Phillips".