Críticas


AZUL É A COR MAIS QUENTE

De: ABDELLATIF KECHICHE
Com: ADÈLE EXARCHOPOULOS, LÉA SEYDOUX
06.12.2013
Por João de Oliveira
Um belíssimo filme sobre a descoberta da sexualidade, do amor e de suas primeiras desilusões

Oriundo do teatro, a obra do cineasta franco-tunisiano Abdellatif Kechiche é, desde seu ótimo primeiro filme (La faute à Voltaire), repleta de referências teatrais e literárias. Desta forma, mesmo que seu último filme seja oficialmente uma adaptação livre de uma história em quadrinhos, a sua inspiração maior, ao menos no que concerne a narrativa e a construção dos personagens, vem do romance inacabado do dramaturgo francês Marivaux citado no filme, A vida de Marianne ou les aventures de Madame a condessa de..., e das tragédias gregas e francesas.

Se uma das características do romance de Marivaux, como diz Adele no início do filme, é a riqueza de detalhes com a qual o autor descreve a vida de sua personagem, da infância pobre à prosperidade da fase adulta, o mesmo pode ser dito do filme. Para narrar as primeiras aventuras amorosas e a descoberta do amor de sua personagem, o cineasta também procura manter-se o mais próximo possível dela, mantendo a câmera quase colada à sua pele. Para isso faz uso reiterado de close-ups, da câmera na mão, de planos sequências e não hesita em repetir algumas cenas do cotidiano (incluindo as ardentes cenas de sexo) ou em prolongar o máximo que pode a duração de algumas sequências, o que pode incomodar o espectador mais conservador. Tudo isso a fim não apenas de afirmar o seu caráter descritivo mas também de acentuar um certo realismo, sem que isso implique necessariamente em suspensão do registro dramático, em perda de ritmo ou em prejuízo para a narrativa. Em um autor acostumado aos longos discursos, a ausência sistemática de diálogos em algumas sequências e o fato de que a personagem principal possui o mesmo nome da atriz reforçam essa intenção descritiva e realista de algumas cenas.

Se o genial dramaturgo francês, que também faz parte da intriga do excelente A Esquiva (L'Esquive), utilizou o seu romance para traçar um perfil da França no século XVIII, o lançamento do filme, que conta a história de uma paixão tórrida e avassaladora vivida por duas mulheres, em um momento em que os conservadores franceses ainda não digeriram a aprovação da lei que permite o casamento e a adoção entres pessoas do mesmo sexo não poderia ser mais atual. A narrativa amorosa não impede o diretor de manter suas preocupações críticas habituais e de abordar, ainda que de maneira bastante matizada, alguns problemas da sociedade francesa contemporânea. Assim, sem procurar tomar partido, o filme apresenta a delicada questão da homofobia entre os jovens e a existência de posturas machistas entre casais do mesmo sexo, tomando o cuidado de transferir o habitual conflito sexista das relações heterossexuais para o campo da luta de classes.

Desta maneira, o diretor prefere denunciar, de maneira mais partidária e maniqueísta, o enorme abismo sócio-cultural existente entre as diferentes classes sociais francesas. Parecendo ilustrar o provérbio francês que afirma que "os cães não reproduzem gatos" (explicação para o fato de que alguns filhos tendem a se parecer com os pais), o filme apresenta, de maneira determinista e quase emblemática, cada uma das personagens como membro de sua própria família e de sua classe social. Adèle é uma simples professora primária, originária de uma família simples e tradicional da periferia de qualquer grande cidade francesa (quase não há referências geográficas de maneira a melhor universalizar o problema) cujas preocupações raramente vão além das preocupações banais com a subsistência e com a constituição e perpetuação da família. Sonhadora, em busca do amor ideal, Adèle busca na leitura de romances o romantismo que a realidade de suas primeiras aventuras amorosas insiste em lhe negar. Emma é artista plástica, leitora de Sartre e filha de uma família moderna, intelectualizada de classe média e frequentadora de grandes centros culturais e intelectuais. Não existe, entre as duas famílias, entre as duas classes e, por consequência, entre as duas personagens, o menor ponto de convergência, além do forte sentimento que as une. Dos assuntos discutidos às predileções culturais, passando pelos tipos de comida e pela forma de falar, tudo parece separar-lhes, distanciar-lhes.

Demonstrando uma vez mais o seu perfeito domínio da direção de atores, as duas atrizes estão excepcionais em seus papéis, particularmente a jovem e talentosa Adèle Exarchopoulos. Há em sua paixão juvenil, em sua vontade de responder às suas dúvidas existenciais e sexuais empiricamente, algo da predestinação, da liberdade, da determinação, da inelutabilidade e da ambiguidade das heroínas românticas das grandes tragédias, cujos destinos são regidos pelas forças enigmáticas e inexoráveis dos deuses, o que transforma as alusões feitas a Eurídice e a Antígona em fato narrativo. Na busca de sua felicidade, da realização de seus ideais, Adèle tanto pode ser vítima quanto algoz, culpada como inocente em relação a seus próprios atos. Como Antígona, ela não quer mais ser criança e busca esse crescimento agindo, vivendo, recusando a inação. Cada momento vivido, seja ele positivo ou negativo, faz parte de um processo iniciático que lhe permite amadurecer e "adultecer". Como dizia Nietzsche, o que não nos destrói nos fortalece.

O rosto da jovem atriz é de uma expressividade pouco vista em jovens atores. Tudo nele é significativo. Da forma do olhar, que tanto pode ser penetrante e triste quanto alegre ou indiferente, passando pelos tiques, pelos longos silêncios e pela maneira sensual como ela mexe a língua ou a cabeça, tudo nela exprime um sentimento, denota uma emoção, um desejo.

Juntas, as duas personagens representam polos diferentes da obra do cineasta. Adèle e a classe à qual ela pertence encarnam o cinema social e militante do cineasta, enquanto Emma, com sua crítica da mercantilização da arte e da falta de gosto generalizada, simboliza a sua independência artística e o seu ideal de cinema. Não conformista como Kechiche, ela recusa-se a ceder aos cantos de sereia do mercado e dos marchands para impor o seu estilo pessoal. Não por acaso, ela adora o livro O Existencialismo, de Sartre, no qual o filósofo francês faz apologia, entre outras coisas, da subjetividade humana, da capacidade do Homem de ser ele mesmo, de se individualizar, o que é um dos postulados do cinema de Kechiche. Para Emma, personagem menos idealista que Adèle, não há determinismos e é ela, para o melhor ou para o pior, quem decide de sua própria vida, de sua arte.

Azul é a Cor Mais Quente é um belíssimo filme sobre a descoberta da sexualidade, do amor e de suas primeiras desilusões na passagem da adolescência à fase adulta. Com ele o cineasta recupera-se do fracasso de seu filme anterior, Vênus Negra (Venus noire), que, apesar de ser a sua obra mais abertamente engajada, é o seu filme mais desequilibrado.

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