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ELA

De: SPIKE JONZE
Com: JOAQUIN PHOENIX, AMY ADAMS, SCARLETT JOHANSSON (voz)
17.02.2014
Por Luiz Fernando Gallego
Um olhar mais psicanalítico sobre o melhor filme/roteiro de Spike Jonze.

Há uma cena de “Ela” em que Theodore, vivido por Joaquin Phoenix, conversa com uma menininha de 4 anos em sua festa de aniversário e com “Samantha”, a voz feminina (de Scarlett Johansson) de seu OS (Sistema Operacional com inteligência artificial). A criança aceita com naturalidade que ‘Samantha” “more” dentro de um pequeno computador de bolso. O sorriso de Phoenix, que também conversa espontaneamente com seu O.S., é quase tão infantil quanto o da menina: uma das muitas facetas do ator neste filme quase-monólogo (ou quase-diálogo) em que ele constrói o personagem de modo mais íntimo e interiorizado. E mais surpreendente (ainda que esteja sendo menos reconhecido na bolsa de premiações) do que em suas interpretações para “O Mestre” (2012), “Amantes” (2008), “Os Donos da Noite” (2007) ou “Johnny & June” (2005).

O personagem escreve cartas por terceiros em um escritório onde muitos outros empregados fazem o mesmo, mas Theodore parece ser especialmente talentoso naquilo que faz. Há casos em que ele escreve por alguns clientes há anos, colocando-se na pele dos outros e lhes "dando uma voz" que não possuem – e isso se chama empatia (nada a ver com simpatia).

Ao adquirir um novo e revolucionário sistema operacional (o filme se passa em um futuro próximo), Theodore escolhe que o computador fale com voz feminina, e logo lhe é perguntado como era seu relacionamento com a mãe (Freud na veia?); ele tenta dizer que quando comentava algo de seu com ela, a mãe logo falava de si – o que parece ter sido suficiente para a configuração do sistema ficar pronta. A voz do novo “O.S.” de Theodore será, para ele, o que sua mãe não era (empática) e o que a auto-denominada ‘Samantha’ faz é análogo ao que ele faz por seus clientes, expressando-se através de uma voz que capta quem ele é com extrema acuidade e que chega a mostrar aspectos, talentos e habilidades que Theodore nem estava reconhecendo em si mesmo.

Mais adiante, quando ele e "ela" já se apaixonaram e, passado o que ele chama de lua-de-mel, estão transando (!) menos, e Samantha tentará oferecer um corpo feminino a Tehodore para substitui-la (ou incorporá-la) em uma relação sexual de fato, mas a moça não consegue propiciar, mais do que tesão, a empatia; ela se diz apaixonada pelos dois, admirando a relação “perfeita” (excluindo-se a incorporalidade de Samantha) entre eles. Mas a tentativa é desastrosa para ele, pois não basta admirar alguém e/ou apaixonar-se para ser empático: é preciso se colocar mesmo no lugar do outro, quase que se apagando para tentar captar o que se passa com o outro.

Para o psicanalista americano (austríaco de nascimento) Heinz Kohut é a empatia, mais do que o conteúdo correto das interpretações do analista, que pode propiciar o resultado terapêutico nos tratamentos analíticos. E poucos filmes expressaram isso tão bem. Há momentos mesmo em que a relação de Samantha com Theodore lembra a relação analítica: ele não a vê, tal como no modelo clássico em que o analisando fica deitado e, do analista, sentado atrás do divã, percebe apenas a voz. Samantha estimula que ele fale o que está pensando. Por outro lado e diferentemente, ele também cobra que ela não lhe esconda nada do que sente e pensa, e mais diferentemente ainda, ela está envolvida apaixonadamente por ele, o que seria impossibilitante para manutenção do enquadre analítico adequado. As analogias apontadas, portanto, são apenas parciais.

Uma outra abordagem veria em Samantha uma construção narcisista para Theodore: a mulher ideal que o apoia (Freud preferia chamar essa 'relação de apoio' por um termo sinônimo, “relação anaclítica”) mas pela teoria de Kohut, desenvolvida décadas depois de Freud, tal apoio esperado seria uma demanda do narcisismo infantil - mas não só infantil, pois afinal de contas, como diz a canção, “é impossível ser feliz sozinho”. Ou seja, quando se espera tanto de outrem, esse outrem é investido de “libido narcísica”, um conceito paradoxal para freudianos ortodoxos que só pensam em narcisismo como um estágio que deve ser abandonado em favor do amor pelos outros, como se não fosse possível manter um narcisismo maduro e saudável (nem todo são, é claro) paralelo à capacidade de amar na alteridade. No filme, como na teoria kohutiana, tanto ‘Samantha’, depois de se deslumbrar com sua crescente capacidade intelectual...

(ATENÇÃO: SPOILER)

...vai se direcionar para outros Sistemas Operacionais (especialmente um com voz masculina), como Theodore, depois de elevar sua auto-estima (durante o período em que se viu reconhecido por ‘Samantha’) poderá sofrer a perda do papel que “ela” cumpria em sua vida, mas poderá se reaproximar de Amy (interpretada pela atriz Amy Adams), uma amiga que também passou por momentos de se ver como uma pessoa sem qualidades, sofrida pelo abandono do companheiro de anos (assim como Theodore estava vivendo um divórcio a contragosto quando “conheceu” Samantha), e também tendo tido uma “grande amiga” em um outro “O.S." que também se foi. Resta a Tehodore e Amy a chance de se redescobrirem em um novo momento de suas vidas.

Aberto a múltiplas abordagens, o roteiro do diretor Spike Jonze também exibe dezenas de pessoas "falando sozinhas" (ou com seus O.S.'s): a solidão dos que no futuro (e já hoje) "conversam" mais com seus computadores e seus amigos virtuais do que com quem esteja próximo, real, palpável e corporificado.

Se ainda preferirem uma abordagem mística, podemos resumir o filme com a famosa frase de abertura de um Livro muito conhecido: “No princípio era o Verbo”, mas depois da voz há que haver corpo - e aqui podemos retomar Freud quando afirmava que “o EU é acima de tudo um EU corporal”, caso contrário, seríamos todos apenas virtuais, protoplasmas pensantes.

P.S.: Além do magnífico desempenho de Joaquin Phoenix, Amy Adams está excelente, como sempre, em um papel mais discreto. E Scarlett Johansson mostra-se extremamente competente em seu trabalho de voz, talvez sua melhor interpretação, ainda que nem vejamos seu corpo, rosto ou os famosos lábios.

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Outros comentários
    1226
  • Ana Rodrigues
    17.02.2014 às 19:10

    Muito interessante a sua argumentação de que ela cumpria uma função na vida dele. Curioso que nunca há um desejo ou plano de simulação de como poderia ser fisicamente Samantha. A única situação próxima disso é quando ocorre o encontro com aquela mulher usando a voz da OS.
    • 1227
    • Luiz Fernando Gallego
      17.02.2014 às 20:39

      O que Heinz Kohut propunha era exatamente que os "selfobjects" (intraduzível: "objetoeu"? objeto do eu? objetos a serviço do eu? objetos subjetivos? "subjetos"? - mistura de algo vivido como em parte subjetivo em parte objetivo) constituíam uma FUNÇÃO da qual o EU (self, o sentimento de si mesmo que cada um de nós tem, a representação mental de como nos vemos) ainda carece, ainda não cumpre, ainda não internalizou. Ele propunha 3 funções selfobjetais básicas correspondentes às nossas necessidades de: a) espelhamento; b)idealização; c)gemelaridade ou função alter ego. Na primeira situação precisamos receber um olhar que nos perceba além do que nos percebíamos; na segunda precisamos idealizar um objeto (no sentido de tudo que não é o sujeito, tudo que for "não-Eu")protetor para nosso desamparo; na terceira, ao perceber semelhanças e/ou afinidades deixamos de nos sentir "E.T's", ganhamos pertencimento. No filme, Samantha espelha Theodore, reflete e reconhece suas potencialidades; também tem características que justificam a idealização que ele faz dela, funcionando como alguém mais capaz do que ele se sente (ela que consegue a publicação das cartas que ele escreve profissionalmente como livro); mas será Amy - que paralelamente estava passando por algo semelhante com sua amiga O.S. que surge como possibilidade de ele se sentir como um "igual", deixando de ser uma espécie de alma penada/solitária que mal encontrava seu lugar no mundo.
    1229
  • Ana Rodrigues
    19.02.2014 às 20:32

    Sim. Esse seu comentário é uma extensão da sua crítica. Fascinante esse estudo da idealização. O outro é um espelho do que nós projetamos dele ? E ou ele é o que ele quer fazer parecer ser para nós ? Sim, Theodore era um fantasma vagando até encontrar uma igual. Seu texto complementar Gallego tornou esse filme ainda mais rico.