Críticas


12 ANOS DE ESCRAVIDÃO

De: STEVE MCQUEEN
Com: CHIWETEL EJIFOR, MICHAEL FASSBENDER, PAUL DANO, LUPITA NYONG'O
21.02.2014
Por Marcelo Janot
Poucos filmes sobre o tema mostram seres humanos sendo tratados como animais com tanta contundência

A melhor maneira de se assistir a um filme de época é tentar fruir o que ele nos revela sobre os dias de hoje. Solomon Northup era um carpinteiro e violinista que vivia confortavelmente com sua família em Nova York em 1841 quando caiu numa armadilha e passou os 12 anos seguintes como escravo no sul do país.

O diretor inglês Steve McQueen é negro, mas não tem uma obra dedicada ao ativismo racial como seu colega americano Spike Lee, por exemplo. “12 Anos de Escravidão” não é um filme panfletário, tampouco uma resposta em tom de vingança ao histórico de injustiças contra os escravos, como “Django Livre”, de Quentin Tarantino.

O que McQueen faz, ao adaptar fielmente o livro de memórias de Northup, é dar voz a um homem que perde sua liberdade e se torna vítima e observador dos limites a que se pode chegar a estupidez humana. A interpretação de Chiwetel Ejiofor é estupenda porque desde o momento em que ele leva um tabefe na cara ao tentar dizer que seu nome não é aquele dado pelo comerciante de escravos, Northup percebe que sua chance de sobrevivência está diretamente ligada a ter que esconder de seus “donos” seu passado de homem livre. E o ator consegue, através da contenção de gestos e olhares, transmitir a resiliência de seu personagem.

O filme causa um certo estranhamento a quem conhece os trabalhos anteriores de McQueen, que obteve reconhecimento como artista visual antes de se destacar no cinema. Seus filmes “Hunger”(2008) e “Shame” (2011) eram obras intimistas que refletiam esteticamente sua formação artística. “12 anos de escravidão” está mais próximo da linguagem dos dramas épicos hollywoodianos, com um rigor formal que deixa pouco espaço para ousadias autorais. Mesmo assim, dentro das limitações impostas pelo gênero, o diretor consegue achar brechas para deixar sua marca. O longo plano em que Northup está preso pelo pescoço a uma árvore, se equilibrando por um detalhe, enquanto a vida segue normalmente ao seu redor na fazenda, é uma síntese brilhante que fala mais do que qualquer diálogo.

Ao abordar a história de um sujeito oprimido pelo ambiente que o cerca, tendo que lutar com suas escolhas internas, o filme se conecta tematicamente com o membro do IRA que faz greve de fome na prisão em “Hunger” e com o executivo viciado em sexo de “Shame”. Os amplos espaços abertos que servem de cenário não impedem que “12 anos” transmita uma sensação de aprisionamento psicológico.

A violência, moral e física, é tratada com um realismo que enfatiza a crueldade e a bestialização promovidas pelos escravagistas. Poucos filmes sobre o tema conseguiram mostrar seres humanos sendo tratados como animais com tanta contundência. O pano de fundo religioso, seja na figura odiosa do fanático vivido por Michael Fassbender ou na hipocrisia do senhor de terras “bonzinho” que prega a palavra de Deus para os escravos mas adere ao “sistema”, também é outro sintoma que conecta o filme com a realidade dos homens “livres” do século 21. Transcorridos mais de 150 anos após o episódio, ainda há os que encontram justificativa para a cena de um negro nu, espancado, mutilado e acorrentado a um poste em praça pública.



(publicado originalmente em O Globo do dia 20.02.2014)

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