Críticas


NINFOMANÍACA – VOL.2

De: LARS VON TRIER
Com: CHARLOTTE GAINSBOURG, STELLAN SKARSGARD, WILLEM DAFOE, SHIA LEBEOUF
13.03.2014
Por João de Oliveira
Um diálogo exegético de Lars Von Trier com o produtor, a crítica e o público

Não foi nada fácil resistir à tentação de assistir isoladamente à primeira parte de Ninfomaníaca, visto que desejava assistir às duas partes consecutivamente. E não me arrependo de ter hibernado a minha vontade, apesar dos muitos comichões sentidos durante a espera. Devo confessar que, ao contrário de minhas expectativas, eu gostei muitíssimo do filme. Talvez a maior e melhor provocação de Lars von Trier, que conseguiu, com este filme, dar um grande murro no rosto de uma sociedade judaico-cristã moralista, hipócrita e moralmente conservadora que inibe, quando não proíbe, a alteridade, classificando-a invariavelmente como patológica.

Para o cineasta, o que é degradante e doloroso para uns pode ser intensamente prazeroso para outros, podendo até mesmo, provocação suprema, ser percebido como uma forma de tratamento terapêutico. De maneira sempre provocante e sarcástica, ele arremessa, de forma violenta (sobretudo na segunda parte), seu niilismo na cara do público. Assim como a alusão gratuita ao judaísmo de Seligman, o cineasta faz questão de manter a sequência, sem a menor importância dramática ou narrativa, de uma tentativa de "ménage à trois" de Joe com dois africanos. A sequência termina com os dois negros pelados em primeiro plano discutindo, com seus paus gigantescos quase esfregando na cara do público, em sua língua (sem legendas) supostamente sobre quem deveria penetrar tal orifício, enquanto Joe, esquecida no fundo do plano, decide partir. O patetismo e o aspecto risível da sequência igualam-na ao aspecto tragicômico daquela com Uma Thurman, na primeira parte.

Menos anódina do que parece, a sequência faz uma dupla denúncia. A primeira, e mais evidente, concerne à objetificação da mulher por alguns homens, transformada em mero orifício, em simples receptáculo espermático. Em seguida, a sequência expõe os limites da fetichização que animaliza os negros, transformando-os em maquinas/objetos desumanizados de prazer.

O filme também pode ser visto como uma espécie de autobiografia de seu diretor ou, melhor, como um compêndio, um breviário de sua obra, o que explicaria a escolha pela forma do romance, com narração na primeira pessoa. Nesse caso Joe não seria o alter ego do diretor, mas de sua obra, de sua concepção de cinema (ela incarnaria a criação, surgindo após o "Big Bang" que abre e fecha o filme). As obsessões da personagem, suas taras, sua franqueza, seus desejos de experiências inovadoras, assim como sua inadaptação à monotonia e à banalidade repetitiva do cotidiano - transformadas em adição pelos outros (classificação que ela recusa), pelo politicamente correto - são analogamente idênticas às preocupações estéticas de Lars von Trier, cujos filmes e declarações são invariavelmente polêmicos e incompreendidos. Até mesmo os elogios recebidos por seus filmes costumam aparecer lá de onde o diretor menos espera. Quando, na segunda parte, Joe resolve assumir as suas particularidades (e até mesmo as dos outros, independentemente dos níveis de moralidade e de aceitabilidade dos olhares externos e "patologizantes") como qualidades como outras quaisquer e passa da passividade à ação violenta, a simbiose entre ela e os filmes do diretor é ainda mais flagrante. Joe, como a obra do cineasta, procura reconhecer e valorizar o Outro e a alteridade em sua totalidade, acima e não apesar das disparidades.

O filme também pode ser visto como uma forma de questionamento da crítica cinematográfica, da percepção que alguns críticos teriam dos filmes do cineasta. Dessa forma, não seria insensato perceber o personagem de Seligman, o homem assexuado (o oposto da narradora) e quase misantropo que vive apartado do mundo, totalmente indiferente e insensível às histórias narradas por Joe, como metáfora do crítico (mas também do produtor e do espectador dos filmes do cineasta). Com Seligman, o cineasta dinamarquês aborda a questão ligada aos limites da liberdade de interpretação e ao respeito ou à ignorância à estrutura dos fatos narrados, discutindo a questão da recepção das obras de arte. A divergência repetitiva de Joe, que não concorda quase nunca com a interpretação de Seligman (embora a respeite em algumas ocasiões), traz à tona a problemática relativa à teoria do leitor participante, do leitor modelo, discutida por Umberto Eco em seu livro Lector in Fabula. Esta teoria propõe que o leitor/analista/intérprete, apesar de toda a sua liberdade, não se distancie muito do contexto da enunciação, de maneira a evitar os excessos de subjetividade e a completar, de maneira mais ou menos coerente, o sentido da obra, deixado em aberto pelo autor. E é exatamente o que faz Joe ao escolher como títulos para seus capítulos objetos presentes no quarto de Seligman, o que mostra o contato de sua obra com a realidade que a cerca, ao mesmo tempo em que denuncia o seu caráter ficcional, inventivo (lembrando a sequência final de Os suspeitos, de Bryan Singer). O filme não pretende ser uma desabonação generalizada da crítica, mas uma simples constatação de suas eventuais incoerências e anacronismos de um trabalho que, muitas vezes, assemelha-se mais a um exercício intelectual de estilo do que a uma simples análise crítica. Como disse Godard uma certa vez, o crítico de cinema fala de si fingindo falar dos filmes. Uma sentença que define muito bem o personagem de Seligman.

Seligman é inteligente, bem intencionado, mas quase sempre equivocado em suas digressões. Raciocinando por analogias, ele, que às vezes dá a impressão de escutá-la displicentemente, tenta quase sempre desculpar a personagem e retirar de seus relatos a marca da culpabilidade dentro de uma lógica paternalista que soa falsa e tem dificuldades para dissimular o moralismo por trás do protecionismo. Seus comentários são excessivamente subjetivistas e ignoram constantemente o contexto. Como um produtor ou um crítico, ele tenta, quase sempre que pode, conduzir os fatos narrados para os seus campos de predileção. O que não é em si negativo, se não se distancia demasiado da obra.

Serve de reforço a essa associação o fato de que o filme é precedido por um texto que explica que a obra, tal qual é atualmente exibida, é o resultado de uma montagem reduzida e censurada que o diretor aprovou, mas que não a reconhece como sendo a sua. O que significa que o suspense continuará até o lançamento do DVD ou de uma nova cópia com o director's cut. Ironicamente essa divergência e incompreensão entre diretor e produtor, materializada na falta de empatia existente entre Joe e Seligman, aparece de maneira muito clara no ato final do filme.

A recepção do filme parece ter sido prejudicada pela expectativa exagerada. O filme pode não ser o melhor de seu diretor, mas está longe de ser o pior. Esquecendo-se a gratuidade das provocações e o esquematismo de algumas poucas sequências malsucedidas, o filme é bem dirigido e muito bem narrado e se encaixa perfeitamente dentro do niilismo e do pessimismo critico de Lars von Trier. Que gostemos ou não do caráter da personagem de Joe, impossível não reconhecer as interrogações propostas sobre o sagrado e o profano e, de forma bastante iconoclasta, sobre o lugar e o respeito das diferenças.

Ninfomaníaca deve ser visto como uma espécie de hermenêutica e de propedêutica (de filme bula) da obra de Lars von Trier, como um filme que critica esse período apocalíptico em que vivemos, inteiramente voltado para uma "patologização" desenfreada dos desvios da normalidade.

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