Assistindo a “Os Pássaros” (1963), de Alfred Hitchcock, na imperdível cópia restaurada que esteve recentemente em cartaz no Rio, depois de vê-lo tantas vezes em VHS, DVD ou na TV, pela primeira vez fiz uma possível leitura do filme como uma parábola política. Ora, de um lado temos a América branca e conservadora de uma cidadezinha litorânea; de outro esses pássaros ameaçadores de várias espécies, de corvos a gaivotas, misteriosamente organizados em bando para atacar os humanos invadindo seu território.
Pássaro bom, no filme, é pássaro engaiolado e subserviente, como vemos logo no início, na cena em que Mitch (Rod Taylor) conhece a jovem socialite Melanie (Tippi Heddren) numa loja de animais de estimação. Em seguida, observamos os comentários preconceituosos que a irmã pequena de Mitch faz sobre os negros dos casos em que ele atua como advogado em São Francisco. Ou seja, se São Francisco é a cidade infernal e infestada de negros que se agridem por motivos banais (Mitch relembra, em tom de piada, a briga de um casal que terminou em morte porque a mulher trocou o canal da televisão), Bodega Bay é um pequeno paraíso habitado exclusivamente por anglo-saxões. Na emblemática cena do bar, uma mãe apavorada acompanhada de seus filhos lourinhos tem um ataque de pânico frente à iminência do ataque dos pássaros; uma senhora ornitóloga parece ser a única voz da razão a questionar a capacidade de organização das aves com fins bélicos, enquanto outro frequentador chega a sugerir que é melhor exterminar logo todos os pássaros da face da Terra para que eles não incomodem os humanos. Ataque após ataque dos pássaros, sem uma razão aparente para tal, o caos chega a Bodega Bay, até o ponto em que se sugere que a única solução seja a intervenção de tropas do exército.
Hitchcock nunca permite que se interprete o filme claramente como uma fantasia de ficção científica, em que as aves seriam como uma espécie de força alienígena guiada por uma inteligência misteriosa, mesmo que por vezes brinque com nossa percepção dos fatos como na cena em que oferece um plano do ponto de vista das gaivotas, lá do céu, enquanto o posto de gasolina está pegando fogo. Assim como os comunistas nos anos 50 e 60, ou mesmo os negros em sua luta por direitos sociais e políticos, os inimigos, em “Os Pássaros”, são fruto da mesma natureza em que se inserem os humanos. Cabe observar que Mitch, que mora em São Francisco e advoga para negros, é um dos poucos personagens que não é atacado diretamente pelas aves, apenas quando está na companhia de sua família. Teria sido ele poupado por causa disso?
São muitas questões que ficam em aberto e enriquecem essa obra-prima de tantos méritos já previamente enaltecidos. Fui buscar no valioso livro de entrevistas de Hitchcock a Truffaut alguma pista que pudesse denotar uma intenção de manifesto político por parte do diretor, mas nem Truffaut faz qualquer leitura do tipo nem Hitchcock dá alguma deixa – a cena do bar, por exemplo, segundo ele, tem como única função: servir de momento de pausa para o espectador respirar entre um ataque e outro. Especula-se, no entanto, que a pequena novela em que o filme é baseado, escrita pela inglesa Daphne Du Maurier em 1952, tenha sido inspirada em parte pela ameaça comunista durante a Guerra Fria.
O fato é que revendo “Os Pássaros” cinco décadas depois de sua realização, especialmente num momento de revisão histórica brasileira como esse dos 50 anos do golpe militar e após os últimos acontecimentos de turbulência política, percebemos como a cultura do medo ainda triunfa junto aos setores da sociedade que não sabem o que fazer quando o “inimigo” não é domesticado, mas sim uma ameaça à ordem estabelecida.