Sinto às vezes uma ponta de inveja das pessoas capazes de passar o domingo assistindo o Faustão, comendo frango com farofa e ainda assim ser felizes. Elas precisam de muito pouco para desfrutar do lado lúdico da vida. A ausência de ambições intelectuais nada tem a ver, por exemplo, com a busca ou a perda da simplicidade que infelicitou Charles Foster Kane no seu leito de morte. Não me lembro de ter lido em filósofos que se debruçaram sobre a questão da felicidade qualquer referência ao frango com farofa. Mencionam o bem da alma que só pode ser atingido por uma conduta virtuosa (Sócrates), a autossuficiência (Aristóteles), e a condição do ser humano para quem tudo acontece segundo o seu desejo (Kant). Nada, porém, que mergulhe sobre o que me parece essencial: a felicidade está ligada à ausência da percepção da infelicidade. Não sabemos o quanto não sabemos – e isso nos faz feliz.
O indivíduo pode escrever tolices sem fim e ainda assim ser feliz. Os anos 50 cunharam para isso a expressão “bobo alegre”. Pode pendurar na parede a foto de uma flor, arrancada de uma revista, e diante dela sentir orgulho de sua própria sensibilidade. A ausência de repertório, em todos os casos, lhe é benéfica.
Não é o que acontece com Virgil Oldman, o antiquário vivido por Geoffrey Rush em O Melhor Lance, dirigido por Giuseppe Tornatore. Oldman tem um grande repertório no campo da arte. É refinado de muitas outras maneiras. Na de vestir, de comer, de falar. Não é, portanto, o tipo de pessoa capaz de usar uma expressão como “o que faz a arte é um mistério interior”. Diria isso, talvez, se nas paredes de sua casa estivesse uma cópia amassada da Mona Lisa, tirada de um suplemento dominical. Mas não é o que o filme nos mostra. Oldman vive no seu mundo de obras magistrais, e sua casa é parte desse universo. Como é a mansão de Claire (Sylvia Hoeks), a estranha mulher que surge em sua vida querendo vender sua extraordinária coleção. Claire nunca aparece e isso é o que deflagra a curiosidade de Oldman tornada obsessão. Ele é crescentemente obcecado pela mulher que nunca vê. Até que isso aconteça – e muito depois – comporta-se com a sofisticação de um grupo de pagode que vai divulgar seu novo DVD no Faustão. O “mistério interior” permanece no mais absoluto mistério enquanto O Melhor Lance faz desfilar uma inusitada coleção de clichês.
Na sessão para a crítica do Festival de Berlim de 2013, esse desfile arrancava gargalhadas constrangidas da plateia. Cercados de Rubens, Goya e Modigliani, Oldman e Claire desenvolvem uma dramaturgia banal, rasa, sem liga. Ninguém parece muito à vontade num cenário superlativo. Tropeçam em Christus e Rafael, mas se expressam como se estivessem comentando o Fantástico. Não saem do lugar e a “magia interior”, infelizmente, nunca se exterioriza.