Javé, uma cidade no sertão nordestino, será varrida do mapa com a construção de uma represa, a menos que os moradores provem que o lugar possui valor histórico suficiente para o tombamento e sua conseqüente preservação. A solução encontrada é convocar Antônio Biá, o melhor escritor das redondezas, porém um malandro alcoólatra que já aprontou em tempos idos com todos do vilarejo. Esse é o criativo mote de Narradores de Javé, de Eliane Caffé, que conta com a atuação de um elenco formado por veteranos profissionais, como José Dumont e Nelson Xavier, e por cidadãos de Gameleira da Lapa, na Bahia. Estes gravaram as cenas desprovidos de um roteiro fixo, com falas espontâneas decorrentes apenas de sutis orientações da diretora.
O filme pode ser analisado sob dois pontos de vista diferentes. O primeiro é o mais evidente, no qual observa-se a estrutura narrativa do longa em si. Aqui, os pontos fracos aparecem com mais clareza. José Dumont, no papel de Biá, está ótimo e encarna o espírito fanfarrão do personagem, mas peca num histrionismo exagerado. As histórias contadas são enfadonhas, carecem de emoção e soam repetitivas (concede-se, porém, o benefício da dúvida, pois a inconsistência dos contos narrados tem total relação com o desfecho do filme). Há, também, um certo tom etnocêntrico, refletido no deboche com que os nordestinos são tratados em determinados momentos, como as brincadeiras de Biá com a dentadura de um pobre sertanejo. De bom, destacam-se o roteiro escrito pela própria Eliane, em parceria com Luís Alberto de Abreu, muito bem encaixado no contexto do sertão miserável, e a naturalidade dos atores de Gameleira da Lapa, estimulando a fluidez e a verossimilhança da narrativa.
Em contrapartida, uma outra ótica ilustra a maior qualidade de Narradores de Javé: ser uma competente homenagem às histórias e à arte de contá-las. Neste aspecto, não há um buraco sequer no filme. Tudo o que pode envolver a construção, desenvolvimento, interpretação e narração de uma história é retratado no longa: versões conflitantes, discussões em grupo sobre a veracidade do conto, o constraste entre uma pessoa contando uma história e um bom contador de histórias, a dramatização dos fatos no imaginário do narrador e, claro, os aumentos (ou “floreamentos”, como diria Biá) do contador inventados para valorizar a história e sua transmissão.
Analisado como uma “meta-história”, Narradores pode até ser perdoado por um “furo” que, aqui, funciona perfeitamente. A existência de personagens inverossímeis e situações inusitadas se justifica, uma vez que o filme nada mais é do que uma história contada por Zaqueu (Nelson Xavier), de cujos fatos a maioria ele não vivenciou. Logo, as cenas exibidas compõem uma narrativa “de segunda mão”, captada da imaginação do personagem — afinal, alguém contou a ele o que aconteceu — e que explica exageros e “floreios” do roteiro.
A homenagem às narrativas fica mais óbvia em trechos isolados do filme, como a cena em que a mãe do dono do bar deixa de atender um cliente porque está lendo um livro (“depois de velha, resolveu aprender a ler”, brada o resignado filho). Veneração mais do que justa às histórias, instrumentos, conforme mostra o filme, capazes de neutralizar o ódio, a intolerância e, sobretudo, a desesperança.