Críticas


O MÉDICO ALEMÃO

De: LUCÍA PUENZO
Com: ÀLEX BRENDEMÜHL, NATALIA OREIRO, DIEGO PERETTI.
14.08.2014
Por João de Oliveira
Biografia de um monstro e gênese do conservadorismo argentino

O Médico Alemão, o novo filme de Lúcia Puenzo, narra algumas semanas da convivência do médico nazista Josef Mengele com uma família de classe média argentina e sua tentativa de ajudar a resolver o problema de crescimento da filha do casal. A jovem Lilith, cuja estética aproxima-se do modelo ariano de beleza, é considerada baixa para os seus doze anos. Contra a vontade do pai, mas com a conivência da mãe (de origem alemã), o médico, que condenou à morte um número incalculável de crianças consideradas baixas, tenta mudar o processo natural de crescimento da menina, procurando transformá-la em um ser esteticamente perfeito.

Carismático, inteligente e sedutor, Mengele consegue quebrar as débeis resistências da mãe e acaba transformando Lilith, que ele considera como um “mistério harmonioso em suas medidas imperfeitas”, em sua mais nova cobaia. Ele faz com ela o mesmo tipo de experiência que testara em milhares de judeus do campo de concentração de Auschwitz. Eugenista, o que é quase um sinônimo de nazista, o médico acreditava que a mistura das raças era prejudicial ao desenvolvimento da humanidade e que era possível alterar o patrimônio genético das pessoas de maneira a transformar alguns seres humanos, aqueles considerados perfectíveis, em um protótipo da raça perfeita de super-homens (reinterpretação vulgar e tendenciosa do conceito nietzschiano de “Übermensch”) sonhada por Hitler.

Nesse sentido, é oportuno notar o interesse que o médico desperta pelas bonecas construídas pelo pai da menina e a maneira como o roteiro do filme transforma esse interesse numa metáfora do que teria sido a Alemanha caso o nazismo tivesse triunfado: uma sociedade despersonalizada, transformada em um grupo de bonecas (de autômatos?) louras de olhos azuis produzidas, em escala industrial, pelas mãos de um simples artesão.

Mais do que uma simples biografia do médico conhecido como "anjo da morte" e sua obsessão pelo ideal de perfeição estética e racial, o filme representa o ambiente extremamente favorável que os nazistas encontraram na Argentina do pós-guerra. Talvez por isso o título original do filme seja Wakolda, nome da esposa de um famoso chefe indígena da Patagônia. Com essa escolha, a diretora e autora do romance epônimo buscaria marcar a distância entre o passado e o presente, entre a tradição aborígene e a modernidade eurocêntrica, entre a pureza e a corrupção moral. O nome da mãe, Eva, e o da filha, Lilith, assim como as belíssimas e desérticas paisagens da Patagônia, fazem referência ao suposto jardim edênico encontrado pelos nazistas no solo argentino.

Desta forma, seguindo a mesma linha crítica e memorialista do premiado filme A História Oficial, realizado pelo cineasta Luiz Puenzo, pai da diretora, O Médico Alemão denuncia a maneira como uma parte das classes médias do país conviveu com imigrantes alemães sem demonstrar nenhuma preocupação com a origem dessas pessoas. Indiferentes ao passado então recente da Alemanha, essas classes punham seus filhos para estudar em escolas alemãs que, além de servir de refúgio para criminosos de guerra, mantinham em seus quadros professores e diretores que professavam os ideais nazistas e insuflavam nas crianças os preceitos da ideologia de uma raça constituída unicamente de seres supostamente superiores e belos.

O comportamento e a atitude de algumas das crianças do filme (que lembram vagamente aquelas de A Fita Branca, de Michael Haneke), assim como a conivência e o silêncio cúmplice de uma parte da população argentina, explicariam não a origem do mal nacional-socialista, como no filme do cineasta austríaco, mas das sucessivas ditaduras que assolariam e vitimariam o país em um futuro não muito distante do presente do filme. O fato de o pai, um artesão cujas origens parecem modestas comparadas à da mãe (burguesa), ser o único a recusar a ajuda do médico acentua ainda mais esse papel comprometedor das elites argentinas.

O roteiro simples do filme evita a profundidade psicológica dos personagens, preferindo deter-se no aspecto sociológico das relações mediadas pelos interesses recíprocos. Nesse sentido, Lilith, uma espécie de pré-Lolita, é quem melhor encarna esse duplo utilitarismo. Ao mesmo tempo ingênua e maliciosa, ela seduz e é seduzida pelo médico.

A narrativa do filme, que se contenta em denunciar os fatos sem jamais procurar explicá-los ou determiná-los historicamente, apoia-se nos contrastes entres os dois personagens principais e nas maravilhosas interpretações do ator alemão Alex Brendemühl e da jovem atriz Florencia Bado. Se de um lado temos uma menina risonha e cheia de vida, do outro temos um médico contido e circunspecto cujo caráter fleumático dissimula as suas emoções e torna quase impossível descobrir seus verdadeiros sentimentos e desígnios. E é justamente nessa imperturbabilidade e ausência de paixões do médico que reside todo o suspense do filme. Sua atitude conduz o espectador a se inquietar sobre o destino da menina e os membros da família a se questionarem sobre a natureza da ajuda, sobre se eles estariam sendo testemunha do humanismo de um médico generoso e solidário ou vítima e presa das maldades de um monstro.

A direção, praticamente inexistente, parece ter sido sacrificada em benefício dos personagens e de uma narrativa inteiramente apoiada no suspense. O filme vale pela bela fotografia, pela produção bem cuidada e pela crítica das elites argentinas. Uma crítica que resvala nas comunidades teuto-brasileiras.

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