Há uma certa coragem em assumir uma obra assumidamente rasa em história. Em uma época na qual o cinema-pipoca hollywoodiano tenta cada vez mais vestir-se com um realismo sombrio, blockbusters recentes como Sem Escalas e Pompeia investem no descompromisso e remetem ao cinema de ação dos anos 80 principalmente na simplicidade com a qual são narrados. Luc Besson, que após O Quinto Elemento oscilou entre a pretensão desmedida (Angel-A) e a ação genérica (o recente A Família), recupera o fôlego em Lucy ao trazer essa leveza de tom para a premissa absurda da expansão do cérebro humano – que se revela praticamente uma mera desculpa para o cineasta explorar as possibilidades da personagem na ação.
A agilidade com a qual os fatos ocorrem chama atenção desde a primeira cena. Uma conversa rápida com o namorado apresenta tudo o que se precisa saber da protagonista antes da transformação; assim que a intriga é formada, Lucy gera identificação pela situação vulnerável em que está para depois provar sua capacidade na ação. Não por acaso, diversos elementos do enredo não se explicam, e às vezes nem fazem muito sentido (qual o motivo de Lucy ter ido parar num esconderijo, acorrentada?). A supressão de qualquer explicação alongada que não tenha função narrativa ou temática é a principal característica que divide o roteiro de Lucy em dois níveis.
O primeiro, da ação - privilegiada pela frenética (e surpreendentemente ótima) montagem do próprio Besson - move-se pelas demonstrações de poder da personagem-título. Conforme o cérebro de Lucy se desenvolve, as sequências de ação exploram os novos poderes dela, e o divertido está menos na exagerada (e boa) perseguição de carro do clímax e mais na forma com que Scarlett Johansson lê problemas corporais de outros personagens - ou tenta desesperadamente não se desfazer no avião. Desde o acesso a informações em uma espécie de nuvem de pensamentos até a manipulação da matéria e da gravidade, essas habilidades criam uma gradativa invencibilidade em Lucy, o que não só abre possibilidades para muito além do thriller de perseguição como determina uma lógica narrativa na qual a personagem nunca está em perigo de fato. Isso concentra o espectador mais na demonstração dos efeitos criativos na ação e nas mirabolantes discussões temáticas – o que representa o segundo nível narrativo.
Desde a própria premissa dos humanos usarem apenas 10% do cérebro, o que nunca é visto como um fato científico (mesmo as palestras do personagem de Morgan Freeman mostram apenas “teorias”), o filme imagina os próximos passos de uma suposta evolução, e suspende a realidade para mostrar como esses poderes da personagem podem moldá-la. As metáforas sobre nossa condição como humanos - o que rende muitas imagens de arquivo à National Geographic, são apresentadas em meio ao frenesi da ação sem sobriedade alguma, mais como uma forma de comentário satírico para dar leveza ao filme; é como uma versão farsesca de A Árvore da Vida e de Koyaanisqatsi.
Em termos visuais, Besson deixa mais clara a proposta. Os tons vibrantes em Taipei e os efeitos multicoloridos capturados pela boa fotografia reforçam o que há de mais cartunesco na narrativa. O divertido grafismo que interrompe o filme para mostrar a porcentagem de uso do cérebro por Lucy é uma estratégia que confere ritmo, como um deboche charmoso para lembrar-nos que o filme honra, antes de tudo, a honestidade descomplicada da ação que não tenta ser mais do que é. Mesmo o vilão do sempre excelente Choi-Min Sik está ali só pela presença, para mostrar como é uma imagem forte ver o Oldboy com as mãos sujas de sangue outra vez. A grande prova disso é o arco dramático nulo de todos os personagens além de Lucy – que ganha uma boa cena com a mãe muito devido à ótima atuação de Scarlett Johansson, conferindo leve densidade dramática à protagonista sem precisar de uma solenidade que não caberia na proposta.
No lançamento do filme nos Estados Unidos, Besson citou 2001 – Uma Odisseia no Espaço como inspiração com alguma frequência. O que parecia pretensão irresponsável do francês se revela uma inconsequência admirável em tela: Lucy, com todo seu absurdo, emula de fato a obra-prima de Kubrick, mas com um descompromisso que faz homenagem mais à vocação cinéfila do poder das imagens de 2001 do que por sua filosofia complexa. Quando tem acesso completo ao cérebro, a protagonista observa o mundo ao redor sentada numa cadeira e revela que o tempo é o único lastro da existência, o que é comprovado através de uma filmagem que mais parece um teste de frames por segundo. É como se Besson olhasse para o próprio cinema nessa chave encantada, que ainda transforma o famoso monólito em um pendrive e repete a “Aurora do Homem” do clássico de Kubrick como uma farsa, apenas para nos mostrar o poder do filme de gênero – a prova definitiva da falsa seriedade que Lucy propositalmente exala.
Ao final, o filme falsifica uma camada de complexidade para subvertê-la. Vai do iconoclasta (os planos que captam Lucy de salto alto) ao absurdo temático sem perder o fôlego, usando o espaço da ação como um palco para Scarlett Johansson demonstrar o que haveria de divertido na evolução humana, um espetáculo narrativo entusiasmado com o material de forma quase inocente. Muito no roteiro pode ser usado para acusar Lucy de ser um filme bobo - e não deixa de ser de fato, mas a sinceridade na simplicidade (e sua boa execução) tem um valor que às vezes escapa ao blockbuster – e Besson faz isso com competência aqui. No grandiloquente clímax, o resultado não soa como ambição temática destoante do resto; funciona como o maior exemplo de como a ficção-científica e ação também servem para entreter e rasgar o véu da realidade.