No auge do Império Romano, ao entrarem na arena, os gladiadores tinham por prática saudarem o imperador com as seguintes palavras: “Morituri te salutant” ( Os que vão morrer te saúdam.). Diante da morte inevitável e da pretensa imortalidade do imperador, essa seria a atitude mais honrosa a ser tomada. De todo modo, seria mais apropriado se dissessem: “Morituri moriturum salutant” ( Aqueles que vão morrer saúdam aquele que vai morrer). Mas pareceria uma atitude demasiadamente ousada naquela época, e continua a ser até hoje. Embora a gladiatura tenha sido extinta e os imperadores depostos, a possibilidade de se dizer isso aos dominadores atuais ( Bush, Blair, Sharon e cia.) que continuam a ter poder de vida e morte sobre a grande maioria da população mundial, é praticamente impossível. Para tanto, seria necessário uma modificação radical nas relações de poder, e portanto de subjetivação, assim como uma desmitologização da morte mais ampla do que a que temos hoje; é também necessário que compreendamos que a força do intelecto enquanto tendência para dar conta das questões da vida é uma força esgotada, tendo que ser substituída pelo pensamento.
O pensador Norbert Elias, em seu livro “A Solidão dos Moribundos”, afirma que o problema social da morte é especialmente complicado para se resolver porque os vivos acham difícil identificar-se com os moribundos. Isto não ocorria com a figura do guerreiro na Grécia homérica, pois este não só não temia a morte, como almejava uma bela morte, a morte gloriosa, “euklees thanatós”. Para quem pagou com a vida a recusa da desonra no combate, a vergonhosa covardia, a bela morte assegura uma memória indefectível: ser lembrado para todo o sempre nas cantigas e poemas dos aedos. A bela morte traz não um morrer bem, sem dor, cercado de amigos e parentes, consciência apaziguada. A bela morte implica uma bela vida, uma vida de luta permanente contra o erro, contra a ignorância e a superstição, a tolice e a vulgaridade. Se isso já era possível no século XI antes de Cristo, hoje torna-se necessário, pois as forças dominantes no nosso mundo, políticas, sociais, econômicas e religiosas não param de enfraquecer a vida, potencializando o medo da morte. No século I antes de Cristo, Lucrécio já diagnosticava: o grande medo do homem diante da morte não é o de morrer, mas o de não estar suficiente morto depois de morto, e que lhe sobrevenham terrores e dores infinitas pela eternidade afora.
O que nos é dado ver em As Invasões Bárbaras? Um homem de cinquenta e três anos, um intelectual amargurado com todo o conhecimento obtido através de lutas travadas ao longo de sua existência, fica sabendo repentinamente que vai morrer num curto espaço de tempo. Apesar de viver num país considerado de primeiro mundo, é internado num hospital público canadense que mais parece um Souza Aguiar. Tem uma mulher de quem está separado há mais de quinze anos e com ela teve dois filhos: um jovem executivo bem sucedido e que também é seu desafeto político- ideológico e afetivo que não vê há vários anos e uma filha iatista profissional por quem é apaixonado, mas também ausente.
Por iniciativa da mãe, o filho bem sucedido social e economicamente aparece, e depois de uma boa cobrança sentimental repleta de culpas, resolve ajudar o pai, aplicando os mesmos métodos que fazem o sucesso de todo executivo: a amoralidade, a perversão e a sedução econômica, aliadas a um certo charme pessoal e sombrio, para quem os fins justificam os meios. Daí em diante, todos os recursos lícitos e ilícitos são postos à disposição do pai pelo dinheiro e pela influência do filho para que aquele tenha uma boa morte. Até uma jovem viciada em drogas ditas pesadas é contratada para amenizar as dores do pai, através de injeções em doses cada vez maiores de cocaína e morfina.
No fim, o pai é levado para morrer numa bela casa de campo, em frente a um belo lago dourado, cercado por seus amigos devotados, financiados pelo filho capitalista que acaba se reconciliando com o pai, professor universitário, socialista fracassado e que já fora existencialista, anarquista, comunista, maoísta, freudista, e que agora é apenas mais um homem que sabe que vai morrer. A outra personagem que também sabe que vai morrer é a jovem viciada, e que sabe que não terá uma boa morte. Finalmente, como era de se esperar, o pretendente à boa morte deixa a vida cercado de cuidados e rodeado de amigos e parentes que parecem ignorar o fato de que são mortais. O filho antes renegado pelo pai, parte de volta a seus negócios com a certeza do dever cumprido, ainda que abalado pela figura da jovem viciada que acaba ocupando o antigo apartamento de seu falecido pai. A filha que o moribundo tanto amava, só lhe oferece sua própria imagem na tela de um lap-top, enviando-lhe mensagens e beijos amorosos e o frescor da brisa do mar a milhares de quilômetros de distância.
O que ficou do filme e o que faltou ao filme? Ficou, em primeiro lugar, um roteiro muito bem construído e que faz uma crítica inteligente ao “stablishment” e à sociedade tecnocrático-burguesa-capitalista atual e ao seu paroxismo no que diz respeito às relações sociais e à subjetivação que nos é imposta sobre os fatos que envolvem a morte de todos nós. Ficou também a forma bem humorada de denúncia ao funcionamento das instituições encarregadas do bem-estar social: universidade, hospitais, polícia e família. A corrupção generalizada que acaba nivelando por baixo o “primeiro” e o ‘terceiro” mundos. A visão hipócrita e conservadora no que diz respeito ao uso das drogas. Uma montagem correta dentro dos moldes da imagem-ação: situação, ação, situação modificada; bons atores diante de uma câmera bem comportada; uma música que busca ser um elemento a mais na trama que o diretor utiliza, para envolver o espectador em torno de sua trama central: uma boa e apaziguadora morte – com destaque para a letra e música da canção final.
Faltou uma problematização mais contundente diante da morte e da solidão dos moribundos. Uma crítica mais rigorosa diante do poder médico e institucional que só faz enfraquecer e isolar aqueles que eles sabem que vão morrer. Em épocas mais distantes, morrer era questão muito mais pública que hoje. A visão de um moribundo abala as fantasias defensivas que as pessoas constroem como uma muralha contra a idéia da sua própria morte. Faltou uma problematização mais consistente da morte. Não é bem a morte que nos faz calar, que nos faz servos voluntários, que nos torna ovelhas de outro rebanho, que nos impede de pensar, e sim o medo que ela traz. O vazio, a angústia, o desespero são produtos do medo da morte.
Fassbinder costumava dizer que somente começamos a viver quando vivenciamos, em alguma situação extrema, a certeza de que somos mortais. O medo da morte talvez seja a maior e mais poderosa forma de controle político inventado pela humanidade. Numa época em que as grandes potências reduzem a um nada o nosso viver, deveria ser incluído nos chamados “direitos do cidadão”, o direito que cada um de nós deveria ter de morrer a seu modo. Chega de morrer de Bush, de Saddam, de Blair, de Sharom, de terror, de câncer, de fome, de ignorância e de estupidez. É preciso começar-se a morrer de beleza, de arte, de alegria. Basta que para isso comecemos a pensar, e que não esqueçamos nunca de que a desigualdade social é antes de tudo a desigualdade do homem diante da morte.
“Aos pés das muralhas de Tróia que o viram, desvairado, fugir de Aquiles, Heitor está agora parado. Ele sabe que vai morrer. Atena o enganou; todos os deuses o abandonaram. O destino de morte já se apoderou dele. Mas, se já não pode vencer e sobreviver, depende dele cumprir o que exige, a seus olhos como aos de seus pares, sua condição de guerreiro: transformar sua morte em glória imperecível, fazer do lote comum a todas as criaturas sujeitas ao trespasso um bem que lhe seja próprio e cujo brilho seja eternamente seu. “Não, eu não pretendo morrer sem luta e sem glória como também sem algum feito cuja narrativa chegue aos homens por vir”.
(Jean Pierre Vernant em A Bela Morte e o Cadáver Ultrajado, citando a Ilíada)
FRANCISCO CARLOS DA FONSECA ELIA é Doutor em Comunicação pela UFRJ, Pesquisador da Fundação Casa de Ruy Barbosa e Professor da Escola de Cinema Darcy Ribeiro