Há diversas formas de se provocar a reflexão através da violência. Ao adaptar A Última Tentação de Cristo para o cinema, Martin Scorsese nos apresentou um fascinante Jesus Cristo em conflito, violentado moral e fisicamente, experimentando as contradições do servir a Deus e ao homem, ou, como bem definiu o autor do livro, Nikos Kazantzakis, “a impiedosa batalha entre o espírito e a carne”. É um filme violentíssimo.
Já o jeito Mel Gibson de fazer o espectador refletir é sutil como uma patada de elefante. Violência, para ele, é sangue, e mais nada. Gibson parece acreditar que só há uma forma de se compreender o martírio por que passou Jesus Cristo em sua via crucis: mostrar com detalhes a sucessão de agressões físicas a que foi submetido até seu corpo virar uma massa disforme, como se a platéia pudesse sentir aquilo na própria pele. Para isso, o desenho de produção recria Jerusalém de forma impecável, os atores falam aramaico e latim como na época, e Gibson até pediu ao diretor de fotografia Caleb Deschanel para que as imagens lembrassem a obra do pintor italiano Caravaggio. Só esqueceu de um pequeno detalhe: seu Cristo não pensa. A não ser pela suposta semelhança física, não há quase nada no personagem interpretado por Jim Caviezel que faça alguém acreditar que se trata de Jesus Cristo.
Tire os cenários, o aramaico, o latim e a coroa de espinhos e aquele Cristo se transforma em um prisioneiro como outro qualquer, sendo violentado sem motivo, porque o filme também contextualiza muito mal as razões de tamanha violência. OK, entendemos que mostrar seres humanos submetidos a todo tipo de injustiça e transformá-los em heróis seja uma obsessão de Mel Gibson, não só em muitos papéis que interpretou, mas sobretudo nos dois filmes que dirigiu - Coração Valente e O Homem sem Face. Mas, ora bolas, reduzir uma figura complexa como Jesus Cristo a um Rambo sem direito a vingança é como contratar o Ronaldinho para o seu time e escalá-lo de goleiro.
O único personagem de A Paixão de Cristo que escapa dessa unidimensionalidade atroz é Pôncio Pilatos. Os demais são meras caricaturas do Bem e do Mal (olha o Rambo aí de novo!) e a Maria Madalena de Monica Bellucci não é absolutamente nada, sua presença é tão decorativa quanto as colunas do Templo. Nem mesmo o cuidado técnico com os detalhes mencionados dois parágrafos acima é bem aproveitado: todo o esforço de Gibson no sentido de criar uma atmosfera realista vai por água abaixo com o excesso de maneirismos visuais. Tantas cenas em câmera lenta e a opção pelo uso do close em larga escala, servem, isso sim, para deixar a impressão de que Mel Gibson experimenta um deleite sádico ao retratar aquele homem sendo torturado.
É impressionante como, em duas horas de projeção, não há mais do que um ou dois planos criativos, daqueles que nos façam lembrar que um filme é uma manifestação artística. Na verdade, A Paixão de Cristo se vale de polêmicas tolas e forçadas para faturar milhões usando o nome de Deus. E é a forma mais grosseira de nos mostrar como “a maior história de todos os tempos” pode ser reduzida a uma luxuosa reconstituição sensacionalista do “maior crime de todos os tempos”. Linha Direta perde.
# A PAIXÃO DE CRISTO (The Passion Of The Christ)
EUA, 2004
Direção: MEL GIBSON
Roteiro: BENEDICT FITZGERALD E MEL GIBSON
Produção: BRUCE DAVEY, MEL GIBSON, STEPHEN MCEVEETY, ENZO SISTI
Fotografia: CALEB DESCHANEL
Montagem: JOHN WRIGHT
Música: JOHN DEBNEY
Elenco: JIM CAVIEZEL, MAIA MORGENSTERN, MONICA BELLUCCI, HRISTO SHOPOV, MATTIA SBRAGIA
Duração: 127 min.
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