O relançamento de Um Tiro no Escuro (1964), segundo filme da série da Pantera Cor-de-Rosa, com o inesquecível Peter Sellers no papel do atrapalhado francês inspetor de polícia Jacques Closeau, esclarece o quanto algumas idéias contrárias ao humor no cinema atual às vezes são equivocadas. Credita-se muito o que seria o mau estado do humor atual a uma falta de bons roteiros e a um apelo a recursos fáceis como escatologia barata.
Claro que algumas dessas restrições têm sentido, e claro também que grande parte das obras-primas da comédia cinematográfica tinham como base material escrito de alto nível, só que também muita coisa de alto nível foi feita à base, sobretudo, de verve. É o que sobra neste filme e falta em boa parte das comédias atuais. Se há alguma coisa que falta a Um Tiro no Escuro é uma historinha um pouco melhor, e isto impede que o filme seja genial. Sobra a boa mão do diretor (e aqui também co-roteirista e co-produtor) Blake Edwards (vencedor de um merecido Oscar honorário este ano), que também fez dramas famosos (como Vício Maldito, sobre alcoolismo), mas cujo desenvolvimento maior da carreira se deu no terreno do humor, criando não só a famosa série da Pantera, como obras-primas da comédia romântica (Bonequinha de Luxo), pastelão (Um Convidado Bem Trapalhão, também com Sellers) e musical (Vitor Ou Vitória?).
Ele sempre foi um diretor consistente, um narrador seguro, dominando usos de cores, trabalho de câmera, ritmo de montagem, enfim, encenando bem seu humor. Um Tiro no Escuro já começa com uma das melhores aberturas do cinema, em que a câmera melíflua, em passeio elegante, expõe o entra-e-sai, com ares de vaudeville, de várias pessoas dos quartos de uma casa, levando a platéia (acertadamente) a supor que está rolando uma ciranda de adultérios, até ecoar o tiro que detona a trama (entrando em seguida uma abertura bem ao estilo da série, com desenho animado e a famosa trilha sonora de Henry Mancini). Tal trama caminha até um fim tão precário, quanto abrupto e ousado (devido ao destino reservado a um dos personagens) que mostra como a historinha pouco importa - o bom mesmo é desfrutar as belas cenas e seqüências feitas por Edwards, em especial os vários assassinatos que começam na casa noturna espanhola.
Além da mão de Edwards, o resto, como se isso fosse pouco, é o extraordinário talento cômico do saudoso Peter Sellers (1925-1980), com sua expressão corporal e olhar único, capaz de dominar a atenção da platéia com desenvoltura. E não podemos esquecer do ótimo coadjuvante Herbert Lom, que em Um Tiro no Escuro aparece pela primeira vez na série como Dreyfus, chefe e depois adversário de Closeau, criando um dos retratos mais bacanas da neurose no cinema, cheio de tiques nervosos saborosos. Sem nostalgias paralisantes, ver/rever Um Tiro no Escuro e demais filmes da Pantera nos fornece boas idéias para analisar o humor atual.
# UM TIRO NO ESCURO (A Shot in the Dark)
EUA, 1964
Direção: BLAKE EDWARDS
Roteiro: BLAKE EDWARDS, WILLIAM PETER BLATY
Produção: BLAKE EDWARDS, CECIL F. FORD
Fotografia: CHRISTOPHER CHALLIS
Montagem: BERT BABES, RALPH E. WINTERS
Música: HENRY MANCINI
Elenco: PETER SELLERS, HERBERT LOM, ELKE SOMMER, GEORGE SANDERS , BURT KWOUK, TRACY REED, GRAHAM STARK
Duração: 102 min