Críticas


"ELEFANTE" E O FIM DA REALIDADE

03.05.2004
Por Thiago Stivaletti
"ELEFANTE" E O FIM DA REALIDADE

Inspirado no massacre da escola de Columbine, Elefante não propõe causas para a tragédia, como o faz o documentário de Michael Moore, Tiros em Columbine. Ao contrário, intensifica o mistério em torno do caso. Sua mise-en-scène instaura um problema filosófico: se a única verdade realmente palpável é a verdade de cada um, o universo individual e absolutamente subjetivo, onde está a realidade, essa teia delicada formada de pontos que raramente se tocam?



O filme de Gus Van Sant nos diz que essa realidade é o mito maior de nossos tempos. Faz pensar o quão ocas são todas as respostas que a sociologia e a mídia nos forneceram para o massacre: exposição excessiva a games violentos, falta de atenção em casa e na escola, discriminação dos colegas, acesso fácil a armas pesadas de última geração pela internet, um possível contato com as teorias nazistas. Tudo isso está lá, mas nada parece suficiente para construir a motivação de Alex e Eric. De repente, uma longa seqüência deste último ao piano tocando Pour Elise, de Beethoven, reinstala o mistério. A arte, a verdadeira, parecia não caber no universo daquelas almas aparentemente ignorantes, e no entanto surge onde menos se espera. Beethoven pode ser tão culpado do massacre quanto Hitler ou o diretor arrogante. Se esse universo individual é tão forte – e tão impenetrável –, como encontrar causas e respostas?



O título do filme, premiado com a Palma de Ouro em Cannes no ano passado, nos propõe um enigma que não será resolvido até o final. Trata-se do nome de um média-metragem do inglês Allan Clarke sobre a violência religiosa na Irlanda. Durante esse filme-referência, menciona-se a parábola budista do cego que quer saber o que é um elefante e se põe a tatear o animal para descobrir sua forma. Dependendo da parte em que toca (rabo, orelha, tromba), ele tem uma idéia do que é um elefante. Mas mesmo a soma das partes não basta para fechar o quebra-cabeça.



Resta que o filme parece ser o exemplo mais bem-acabado de um longo processo de individualização no cinema americano independente. Em Magnólia, Paul Thomas Anderson já construía o seu universo de vasos não-comunicantes, mas a voz do cinema (e do diretor) falava mais alto. Cada personagem vivia seu drama existencial e sua solidão sem possibilidade de contato com o outro, mas aqui e ali eram obrigados a prestar contas à obra que os reúne: cantar a mesma música juntos, encarar um processo de redenção que não vinha de dentro, mas de um deus ex machina surreal. O cineasta orquestrador era o personagem mais presente. O massacre de Elefante não vem do céu, como a abertura parece prenunciar. A tempestade que se anuncia ao longo do filme não derrama sapos. A tragédia brota lenta e naturalmente dentro de duas daquelas almas indecifráveis: Alex e Eric. Mas e se viesse de John, de Elias, de Michelle Nada seria absurdo.



Se é a essência do sujeito que conta, e ela é impalpável para o outro, a aparência também é de pouca valia para instaurar essa realidade falida de antemão. “Podemos identificar um gay na rua?”, discute um grupo de alunos. Podemos identificar os assassinos antes que o massacre ocorra? Podemos dizer que são homossexuais porque trocaram um beijo antes da morte anunciada?



O impacto é ainda maior face à idéia de que o cinema é o espaço onde o espectador acompanha com olhar privilegiado a interação entre personagens minimamente interessantes em momentos-chave da vida. Nossa pulsão voyeurística é tão satisfeita quanto a necessidade de viver grandes momentos, mesmo que por procuração. O próprio Van Sant refez Psicose pela fascinação de testemunhar aquele assassinato no chuveiro em detalhes. Mas o que Elefante mostra, na maior parte do tempo, são meninos caminhando sozinhos, atormentados por seus próprios problemas, misturando as músicas que passam por suas cabeças aos ruídos do mundo dito real, travando diálogos sem importância que não revelam nada de suas essências. A solidão física, racional e existencial, a banalidade dos encontros cotidianos, essa matéria que preenche a maioria absoluta dos instantes em que estamos acordados, muito mais do que os encontros que mudam vidas, os grandes relacionamentos, o amor, o sexo.



Se até o fim não existe para o espectador nenhum colégio ou espaço coletivo, o massacre não é diferente. Nada de planos gerais de corpos pelo chão, apenas o ponto de vista dos matadores e de cada uma das suas vítimas. Uma menina que hesita em fugir pela janela. Um outro estudante que resolve ficar e tirar o caso a limpo sem motivo aparente. E o mistério do último plano, em que Alex descobre Nathan e a namorada no frigorífico do colégio e vai matá-los. Duas peças gigantes de carne morta que prenunciam a morte do casal, a morte do atirador, do seu parceiro, de todas as vítimas. Da juventude. E do sonho coletivo. Somos todos bem-vindos ao fim da realidade.



THIAGO STIVALETTI é jornalista

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