O plano: levar para o cinema a viagem dos jovens Ernesto Guevara de la Serna e Alberto Granado, de moto e de carona, pela América do Sul em 1952.
O método: filmar sempre que possível nos mesmos lugares onde tudo aconteceu, com base nos relatos Notas de Viaje, de Guevara, e Con el Che por Sudamerica, de Granado.
Os pilotos: Walter Salles, um dos mais inteligentes e prestigiados cineastas do mundo hoje; o produtor Robert Redford, criador do Festival de Sundance e patrono-mor do cinema independente americano; o dramaturgo e roteirista porto-riquenho José Rivera, conselheiro do Sundance; o ator Gael Garcia Bernal e o músico Gustavo Santaolalla, mexicanos revelados em Amores Brutos; o ator argentino Rodrigo de La Serna, um novo Alberto Sordi; o fotógrafo francês Eric Gautier, o favorito de Patrice Chéreau, Raoul Ruiz e Olivier Assayas; o jovem montador brasileiro Daniel Rezende, indicado ao Oscar por Cidade de Deus.
O resultado: um filme para se ver com o coração e não se esquecer tão cedo.
A paráfrase acima, aludindo à forma como Che e o filme iniciam seus relatos, justifica-se pelos diversos paralelos que vêm sendo feitos entre a “viagem iniciática” de 1952 e a jornada da equipe, 50 anos depois, pelos mesmos cenários e diferentes emoções. À parte o clichê que sempre acompanha esse tipo de comparação (“nós também éramos outros ao final do trajeto”), há nesse caso razões de sobra para se dar crédito às declarações.
Afinal, os karmas eram numerosos. Granado, com mais de 80 anos, esteve presente em certos momentos da filmagem para revisitar o seu próprio passado e ajustar a sintonia fina da reconstituição. Rodrigo de la Serna, por uma mágica coincidência, vem a ser primo em segundo grau do Che. Diversos figurantes haviam sido pacientes reais do leprosário de San Pablo (Peru). Sem falar na figura icônica de Guevara, sempre capaz de mobilizar os resíduos de sonhos de quem ainda os conserva em algum cantinho da sua dignidade.
Este é, portanto, um filme que procura dialogar com o melhor de cada um de nós. E o faz com exemplar sobriedade, calor humano e absoluta competência artística. Mesmo para os admiradores do seminal Terra Estrangeira, é difícil contornar a evidência de que Salles tem em Diários de Motocicleta o seu melhor filme até aqui. E, diga-se de passagem, com a trilha musical mais bela e justa que ele já utilizou.
Confesso que, ao ler o Diário de Viagem – De moto pela América do Sul, de Guevara (Sá Editora), já sabendo do projeto de adaptação, temi pela sorte de Walter Salles. O livro, escrito alguns anos depois da aventura, a partir das anotações de bordo, tem o frescor e a desimportância de um blog avant la lettre. Comparado com os melhores livros da geração On the Road, parece ingênuo e perdido em detalhes irrelevantes. O que lhe atribui valor, obviamente, é o percurso posterior do Che. O diário de moto limita-se a flagrar momentos em que as sementes do panamericanismo e da indignação social teriam fecundado a consciência do futuro revolucionário.
Salles e Rivera foram extremamente perspicazes em valorizar o que já havia de vivacidade no original e “aquecer” dramaturgicamente o que no livro esbarrava em retórica. Cabe aqui ressaltar que não conheço o relato de Granado, mas acredito que ele tenha contribuído muito para o humor e a energia do filme.
Entre os muitos agradecimentos de Walter Salles no site internacional do filme, ele menciona Ettore Scola, com quem teria conversado “mais de uma vez” sobre esse projeto e que teria dado boas sugestões sobre a progressão da história. Isso, mas não só isso, explica o sabor de comédia italiana que perpassa o filme inteiro, fazendo-nos lembrar ora de Nós que nos Amávamos Tanto, ora de Aquele que Sabe Viver/Il Sorpasso, este escrito por Scola para Dino Risi, ou mesmo de O Incrível Exército Brancaleone. A influência, de resto, soa legítima em função do traço “italianado” que marca a cultura e o humor argentinos.
Assim, Ernesto e Alberto avançam no lombo de “La Poderosa”, na carroceria de caminhões ou mesmo a pé, entre xingamentos e gozações mútuas, explorando o gênero de comédia da dupla ora trapalhona, ora vigarista, e sempre transbordante de humanidade. O ritmo é impecável e as atuações, excelentes. Gradualmente, os encontros na estrada e nas pequenas cidades do caminho vão preparando a suave metamorfose na mentalidade de Ernesto.
Essa evolução é tratada cinematograficamente de maneira sutil mas efetiva, no que muito ajudou a compreensão dos dois atores principais. O fato de Alberto/Rodrigo manter seu histrionismo inalterado durante todo o trajeto serve como parâmetro fixo para que melhor percebamos as transformações de Ernesto/Gael.
No início da viagem, Ernesto quase não fala. É um adolescente retraído, que não sabe dançar, não tem atrevimento sexual e parece dependente das relações familiares. Segue praticamente rebocado por Alberto. Aos poucos, porém, suas reflexões em off vão sinalizando a presença de um inconformismo ainda reprimido pela timidez e pela exuberância do companheiro. A partir do encontro com o casal de comunistas chilenos (único episódio que escapa à “naturalidade” com que tudo parece acontecer no roteiro), as mudanças começam a assumir uma expressão mais física. O olhar de Ernesto vai se tornando mais grave, sua barba parece crescer junto com a percepção da injustiça e da exploração dos pobres e índios sul-americanos. Até que o discurso de aniversário na colônia de leprosos manifesta sonoramente – para espanto de Alberto – o novo patamar de suas idéias.
Com esse conjunto de sinais sonoros e visuais, habilmente distribuídos ao longo do filme, Walter Salles dá conta de uma tarefa delicada, evitando seja a banalidade da aventura-pela-aventura, seja a eloqüência pueril da aquisição súbita de consciência.
Entre as liberdades tomadas em relação ao texto do Che (baseadas nas memórias de Granado, talvez?), há duas de forte conteúdo simbólico. Na primeira, Ernesto discute com um feitor de multinacional e atira uma pedra no seu caminhão – teria Guevara sido um precursor da intifada?! Já no clímax dramático do filme, Ernesto descola monumentalmente do ordinário do mundo ao fazer uma épica travessia do rio Amazonas com um objetivo humanitário. Nesses dois momentos, em que ressalta a decisão de sintetizar mais enfaticamente o processo ideológico do herói, o filme arrisca o rigor historiográfico em benefício da catarse ficcional.
Outro pequeno arroubo de retórica aparece na suposta confrontação entre Machu Picchu e Lima, com sério prejuízo para a segunda. Em Notas de Viaje, pelo menos, Che fez mais elogios que críticas à capital peruana: “cidade atraente”, com um “centro notável”, “novas avenidas agradáveis e largas”, “belos bairros residenciais” e “lugares extremamente prazerosos ao longo da costa”. A inclusão da referência desabonadora à cidade moderna, exemplificada pela vista aérea de uma provável área de subúrbio, ou sintetiza toscamente um pensamento geral de Guevara ou veicula alguma estranha sobreposição de idéias.
Detenho-me num detalhe aparentemente insignificante por se tratar de um filme que pede para ser medido pela ética como pela estética. Afinal, Diários de Motocicleta é um típico filme de Walter Salles. Lá estão o desejo de evasão, a viagem sensibilizadora, o elogio do rústico e do humilde. Faço minha a observação do colega Ricardo Cota, para quem o Che de Bernal parece um alter ego do diretor. A explicação vai por minha conta: o mesmo recuo pessoal para que outros brilhem também, a mesma obstinação no respeito (cristão, diriam alguns) pelo outro, a mesma disposição para lançar pontes entre os dois lados do rio.
Para terminar, mais um paralelo com a enunciação do diário: este não é um filme de façanhas de linguagem, nem de dispositivos teóricos evidentes. Talvez não ganhe o Festival de Cannes, talvez não sensibilize as platéias da era Bush. É apenas um retalho de memória de tempos de inauguração e utopia, revivido com serenidade e talento. O suficiente para gerar um grande pequeno filme.
# DIÁRIOS DE MOTOCICLETA (The Motorcycle Diaries)
Argentina/Brasil/Chile/Inglaterra/Peru, 2004
Direção: WALTER SALLES
Produção: MICHAEL NOZIK, EDGARD TENENBAUM, KAREN TENKHOFF
Produção executiva: ROBERT REDFORD, PAUL WEBSTER, REBECCA YELDHAM
Roteiro: JOSÉ RIVERA
Fotografia: ERIC GAUTIER
Montagem: DANIEL REZENDE
Música: GUSTAVO SANTAOLALLA
Desenho de produção: CARLOS CONTI
Supervisão de arte: GIANNI MINÀ
Elenco: GAEL GARCÍA BERNAL, RODRIGO DE LA SERNA, MIA MAESTRO