Críticas


CAZUZA – O TEMPO NÃO PÁRA

De: SANDRA WERNECK E WALTER CARVALHO
Com: DANIEL DE OLIVEIRA, MARIETA SEVERO, REGINALDO FARIA
11.06.2004
Por Nelson Hoineff
MUSEU DE NOVIDADES

Para se pensar em Cazuza – o Tempo Não Pára é necessário se pensar em Walter Carvalho. O diretor de fotografia de filmes como Central do Brasil, Carandiru ou Filme de Amor – para ficar só em exemplos recentes - estabeleceu ao longo de 30 anos de carreira uma relação dialética com os filmes em que trabalha que lhe torna na prática co-autor de muitos deles. Suas imagens estão como as de Sven Nykvist para os filmes dirigidos por Bergman ou como a música de Nino Rota para os filmes feitos por Fellini. Walter pavimenta a estrada sobre a qual os filmes vão transitar. Imprime o tom, evidencia o que poderia parecer mais obscuro dentro do projeto, de tal forma que ao diretor cabe em grande medida dar continuidade a esse trabalho. Ilumina geralmente com pouca luz, evidenciando que fotografia participativa, inteligente, é bem menos uma questão de quantidade de watts que de neurônios. Filmes com 20 anos de diferença, como O Homem de Areia ou Lavoura Arcaica, seriam muito diferentes sem ele. Sem Walter, Cazuza – o Tempo Não Pára talvez não fosse um filme tão sedutor quanto ele é.



Lembro com emoção de todos os episódios narrados no filme, mas essa lembrança não vem acompanhada por um pingo de nostalgia. A explicação para esse aparente paradoxo leva à compreensão do que existe de singular num filme cuja natureza é bastante comum. Cazuza é afinado com seu tempo de forma bem parecida com o seu próprio personagem, eis porque. Afinado formalmente (a câmera do filho de Walter, mais jovem que Cazuza no início de carreira, tem grande participação nisso), afinado na maneira de olhar para os personagens e de fazer com que os personagens olhem para o mundo, afinado no jeito de contar uma história igual a tantas outras, mas carregada de uma ternura que soa autêntica, porque reconhecer a existência de um espectador dotado de tirocínio do outro lado da lente também é uma boa medida para se aferir a afinação da obra com o seu tempo.



Quando isso acontece, há uma química que ilumina a equipe e retroalimenta o processo de criação. Existe uma grande engenhosidade no roteiro de Victor Navas e Fernando Bonassi que consiste justamente em afastar o proselitismo que tenderia a inundar a biografia de um jovem herói de outros jovens, que morreu no auge de sua fama e de sua força criativa. É possível que essa determinação tenha sido herdada do texto de Lucia Araújo, que não conheço, mas a generosidade autêntica com que no filme os autores tratam a mãe de Cazuza é uma boa indicação do tipo de material sobre o qual eles construíram o seu próprio texto. Em outras situações tem sido diferente. O Trabalho dos Homens é um caso a parte porque é um filme único no seu próprio conjunto, mas trabalhos anteriores da dupla, como Sonhos Tropicais (para o filme dirigido por André Sturm) apresentavam resultados diametralmente opostos aos obtidos em Cazuza.



Entre os acertos mais visíveis do roteiro está sua disposição de valorizar algo que o herói do filme tem em abundância: boa poesia. O fato disso ser feito de maneira não-ritualizada é outro indicador da compreensão e do respeito à obra do poeta. Grande parte do legado poético de Cazuza flui naturalmente ao longo de todo o filme, que não tem que parar para recebê-lo, como se o que é regra na obra do poeta fosse exceção.



As interpretações são expressões bem eloquentes do que parece ter dado certo no processo criativo de Cazuza. Reginaldo Farias, como João Araújo, o pai do cantor, poucas vezes esteve tão bem. No momento em que ouve Caetano murmurar “... eu quero a sorte de um amor antigo”, seus olhos brilham fisicamente, como um efeito especial num filme de ação banal. Emilio de Mello, como Ezequiel Neves, está permanentemente levando o espectador para dentro da ação e é um dos responsáveis para que, ao contrário do caso mais geral, o tempo do filme pareça curto.



Nunca tinha visto Daniel de Oliveira na televisão. No filme, sua semelhança com Cazuza é mais do que física. Bem acima de interpretar, Daniel dá a estranha sensação de estar possuído por seu personagem. Acredito que esta seja a principal razão para que os demais intérpretes sintam-se como se estivessem contracenando com o próprio Cazuza. Li um depoimento sobre isso pela primeira vez numa coluna de futilidades, típica matéria encomendada pela divulgação; depois de ver o filme, admito que quem falou deva ter dito a verdade.



Quem acompanha futebol sabe que o maior mérito que um juiz pode alcançar é não ser percebido durante o jogo. Algo semelhante se dá em cinema com o desenho de produção. Quando aparece muito, geralmente é porque há algo de errado. Quando não é percebido, é porque soube criar condições para, num meio quente como o cinema, dar passagem ao desenvolvimento da ação. Grande parte do filme se passa, é claro, em locais freqüentados pelas pessoas que inspiraram os personagens. A remontagem do Circo Voador na ponta do Arpoador, seu abrigo original, é tão perfeita quanto discreta. Há cenas rodadas em vários bares. Algumas em locações que ainda existem, como o interior da Pizzaria Guanabara, onde esbarrei com Cazuza mais de uma vez. Em outros casos, a reconstituição é minunciosa embora tenha a gentileza de não gritar isso. Só é percebida pelos que conheceram o local, mas é como se com isso estivesse legitimando a cena; algo como um tom musical muito grave ou agudo demais, que não pode ser percebido pelo ouvido humano, mas que ainda assim é sentido pelo ouvinte. É o caso do Real Astoria, o RA, que a produção vai enxergar em pequenos detalhes e elegantemente usa apenas o necessário. Creio ter reconhecido também detalhes do Antonio’s na cena em que Cazuza, embriagado, levanta-se da mesa para provocar os outros freqüentadores. Não imagino Cazuza no Antonio’s mas não acho que esta locação seja obra do acaso.



Todo esse desenho de produção abre caminho, dentro da narrativa realista abraçada pelo filme, para que o espectador se emocione com o que está vendo, sem precisar recorrer a uma leitura paralela, onde ele não vê, mas é forçado a imaginar as intenções. Uma parte desse conjunto está na delicada junção de cenas reais e encenadas, que o filme resolve admiravelmente, em três patamares distintos. No corte de cenas de arquivo da apresentação do Barão Vermelho no Rock in Rio de 1985 para takes filmados agora com Daniel de Oliveira; nas fusões de áudio quase irreconhecíveis de Cazuza para o ator; e finalmente na decisão de deixar para os créditos finais as imagens familiares feitas em Super 8, cuja reprodução, que aparece durante todo o filme, ganha ali uma importância histórica que seguramente não poderia ser percebida numa simples peça de ficção.



Não sou exatamente um cultor dos filmes anteriores de Sandra Werneck. Há neles uma compartimentação de eventos e emoções, uma obsessiva recorrência ao óbvio que me incomodam, mas que desaparecem por completo nesse trabalho. Desconheço a divisão de tarefas entre os dois diretores – e sei que Walter Lima Jr encarregou-se da preparação do elenco, que é algo que o diretor de A Ostra e o Vento sabe fazer com a paciência que a função exige. O certo é que o modelo de interpretação adotado por Werneck e Carvalho está bem mais para filmes como Bicho de Sete Cabeças, de Lais Bodansky, ou O Invasor, de Beto Brant, que para os demais filmes da diretora, como Amores Possíveis ou Pequeno Dicionário Amoroso. O despojamento (e o possível espaço para a improvisação) que domina esse modelo pertence por completo ao universo do compositor e é diversas vezes referido por seu personagem durante o filme. Especialmente na magnífica seqüência de sua luta por incluir O Mundo é um Moinho, de Cartola, num repertório que, de acordo com a posição que o filme atribui ao parceiro Frejat, deveria se ater exclusivamente ao rock.



Uma das dificuldades de se fazer um filme biográfico está na possibilidade limitada de se implantar o que foi planejado. Pior ainda: no exercício da opção de incluir ou deixar de fora momentos e personagens que fazem parte da vida do biografado, assim como em escolher a verdade de cada momento, uma verdade entre tantas outras, que pelo filme vai se perenizar. Ou ainda decidir pela extensão da liberdade de adaptação dessa realidade. Cobranças surgem por todos os lados e a pior maneira de resolve-las é procurar atende-las.



Creio que é isso que Mel Brooks tinha em mente quando planejou fazer A história do mundo – Parte 1. Toda biografia carrega por isso uma enorme carga de ficção ou serve de base a uma obra eminentemente ficcional. Um filme dessa natureza pode ser tudo menos uma tese acadêmica. Vendo Cazuza, não me ocorreu por um momento sequer procurar personagens que não estão lá ou interpretar atitudes que seriam improváveis se confrontadas com a realidade. O filme se encerra perfeitamente nele mesmo - mas é impossível deixar a sala sem levar consigo um pouco de Cazuza. Acredito que este seja o maior elogio que poderia ser feito a esse trabalho.



# CAZUZA – O TEMPO NÃO PÁRA

Brasil, 2004

Direção: SANDRA WERNECK e WALTER CARVALHO

Roteiro: FERNANDO BONASSI E VICTOR NAVAS

Produção: DANIEL FILHO

Fotografia: WALTER CARVALHO

Montagem: SERGIO MEKLER

Direção de Arte: CLÁUDIO AMARAL PEIXOTO

Direção de Produção: MARCELO TORRES

Figurino: CLÁUDIA KOPKE

Elenco: DANIEL DE OLIVEIRA, MARIETA SEVERO, REGINALDO FARIA, EMÍLIO DE MELLO

Duração: 97 min.

site: www.cazuzaofilme.com.br

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