Críticas


NÓS QUE OS AMÁVAMOS TANTO

11.06.2004
Por Carlos Brandão
NÓS QUE OS AMÁVAMOS TANTO

Um a um, eles foram indo embora . Como num filme de Fellini ao som de uma música de Nino Rota, parece que acenavam sorridentes ao sair de cena. E iam desaparecendo, um de cada vez , pano lento, para fora de nossos olhos de amantes do inesquecível cinema italiano que nos fez rir e chorar há tão pouco tempo atrás. Ficaram como testemunhas de sua passagem entre nós as suas imagens e as suas vozes inconfundíveis, gravadas no celulóide, nas fitas de vídeo e nos discos de DVD. E, acima de tudo, na memória de gerações inteiras de cinéfilos que tiveram o privilégio de assistir a alguns dos momentos mais mágicos que as telas do cinema mostraram até hoje.



Primeiro , ainda em 1974, foi embora Vittorio De Sica, o garboso Marasciallo Carotenuto , a dividir suas tentativas de sedução entre a apimentada “bersagliera” Gina Lollobrigida e a charmosa balzaqueana Marisa Merlini em Pão, Amor e Fantasia (1953) e Pão, Amor e Ciúme (1954), de Luigi Comencini. Em 1959, dirigido pelo também mestre Roberto Rossellini , De Sica nos deu um dos personagens mais dramáticos de sua carreira, o vigarista Emanuele Bardone, que se transforma no herói partisán General Della Rovere. Impossível esquecer o também diretor De Sica no genial Ladrões de Bicicleta (1948) e nos clássicos Milagre em Milão(1951), Umberto D.(1952), Matrimônio à Italiana (1964) e O Jardim dos Finzi-Contini (1970), bem como do sub-valorizado Duas Mulheres (1961).



Mas foi a partir de 1990 que fomos empobrecendo cada vez mais rapidamente. Nesse mesmo ano, em seqüência, deram adeus Aldo Fabrizi e Ugo Tognazzi. Fabrizi nos legou o valente padre anti-fascista Don Pietro do marco neo-realista Roma, Cidade Aberta (1946), de Roberto Rossellini . Tantas vezes fazendo estereotipadas figuras napolitanas, Aldo Fabrizi no entanto será sempre lembrado pelo seu Nino, o chefe da troupe mambembe de Filhas do Desejo- Vita da Cani (1950) e pelo Brigadieri Bottoni de Guardas e Ladrões (1951), da dupla Mario Monicelli e Steno. Ugo Tognazzi, com sua persona múltipla, fez do quarentão Alfonso, sexualmente devorado pela sua jovem mulher, a insaciável Regina (Marina Vlady, que ficou profissionalmente marcada pelo personagem), em O Leito Conjugal – Una Storia Moderna : L’Ape Regina, de Marco Ferreri, um personagem de início cômico para ao final mostrar-se cada vez mais dramático. Mas foi em Gaiola das Loucas (1978), de Edouard Molinaro, que Tognazzi soltou todo seu talento interpretando Renato Baldi , literalmente tendo que rebolar para esconder dos sogros de seu filho Laurent o fato de ser gay e dono de um clube de travestis.



Desde 1947, quando foi descoberto por Visconti trabalhando como extra e estreou em Os Miseráveis, de Riccardo Freda, que Marcello Mastroianni havia rapidamente se transformado num dos atores favoritos da Itália. Em 1958, Monicelli o escalou no papel de Tibério, um dos Eternos Desconhecidos. Foi Federico Fellini, contudo, que lhe deu o grande empurrão em 1960 com A Doce Vida, quando, no papel do jornalista Marcello Rubini , Mastroianni se transformou em ídolo instantâneo. No mesmo ano e logo depois, Marcello fez outro filme de enorme sucesso, O Belo Antonio, de Mauro Bolognini.



Não demorou muito para que o seu talento para a comédia fosse usado por Pietro Germi em Divórcio à Italiana (1961), quando o chamou para interpretar o Barão siciliano Ferdinand Cefalú, que mata a sua mulher Rosalia (Daniela Rocca) sob o pretexto de defesa da honra para casar com a prima Angela (Stefania Sandrelli) , mais jovem e bonita.Voltou a trabalhar com Fellini em 1963 na obra prima 8 ½ , onde fez o diretor de cinema Guido Anselmi , em parte uma autobiografia do próprio Fellini. Talvez por isso e a partir daí, começou a ser considerado como uma espécie de alter ego do genial diretor.Em 1977, Marcello trabalhou em Um Dia Muito Especial (Ettore Scola) - talvez um dos filmes mais sub valorizados do cinema italiano - vivendo o homossexual suicida Gabrielle e contracenando com uma Sophia Loren no auge de sua forma interpretando Antonietta, uma esposa traída pelo marido.



Até o fim de sua vida, Marcello Mastroianni era um dos atores mais populares no mundo inteiro, valorizado por mestres com quem também trabalhou , como Manoel de Oliveira, Theo Angelopoulos, Raoul Ruiz e Robert Altman. Em 1996, ele também se foi.



No ano 2000 aconteceu outra grande perda : Vittorio Gassman, o ator que ia de Hamlet a Brancaleone com o mesmo talento e credibilidade, também disse adeus e desapareceu. No caso de Gassman, o mais difícil é citar os seus principais personagens inesquecíveis sem deixar pelo menos uma dezena de fora.Gassman obteve seu primeiro sucesso interpretando Walter, o mau-caráter sádico que tentou usar a ingênua Silvana (Silvana Mangano, iniciando com um sucesso explosivo) para um golpe em Arroz Amargo (1949), de Giuseppe De Santis, num dos primeiros grandes sucessos internacionais do cinema italiano do pós-guerra. Mas foi com Mario Monicelli e Dino Risi que Vittorio atingiu o ápice de seu poder interpretativo. Em 1958, Gassman estava junto com Totò, Marcello Mastroianni, Renato Salvatori, Claudia Cardinale e Carla Gravina fazendo o personagem Peppe il Pantera, chefe da gangue dos Eternos Desconhecidos – I Soliti Ignoti , o cultuado filme do igualmente cultuado Monicelli.



Em 1962, foi a vez do ótimo Dino Risi dirigir Gassman num dos melhores papéis de sua carreira em Aquele que Sabe Viver – Il Sorpasso. Aqui, Vittorio nos brindou com um dos mais ricos personagens das telas até hoje, o do anti-herói exuberante, frívolo, cínico, vazio e por fim claramente infeliz playboy Bruno Cortona. A sua expressão - “modestamente...”- maliciosamente dirigida à surpresa jovem com quem dançava, entrou para a história do cinema. A carreira de Gassman voltou a brilhar intensamente em 1966, quando, novamente sob a direção de Monicelli, criou o satírico Brancaleone da Norcia, um patético nobre trapalhão que comandava um exército de maltrapilhos incompetentes, fauna que adquiriu força de expressão idiomática em diversas culturas para definir grupos de indigentes de todos os tipos.



Foi sem nenhuma surpresa , portanto, que Cannes/75 rendeu-se ao talento de Vittorio Gassman pelo seu desempenho em Perfume de Mulher (74), de Dino Risi , no papel de Fausto Consolo, o carismático ex-militar cego que enxergava mais do que a maioria das pessoas que estavam ao seu lado. Anos depois, o cinema americano, ao refilmar o Perfume de Mulher com Al Pacino no papel principal, conseguiu valorizar ainda mais o Capitão Fausto de Gassman.



Qual o cinéfilo que não tem ainda muito viva, ao seu ouvido , a voz metálica de Alberto Sordi? Sordi (1920-2003) era um desses atores cuja presença física e gestual eram personalíssimas, italianas até a medula, estivesse ele interpretando um padre católico, um milionário, ou um oficial fascista da Itália dos anos 40. Um dos mais prolíficos atores italianos, Sordi fez 147 filmes, começando praticamente como um extra em 1937 em Cipião, o Africano, dirigido por Carmine Gallone e produzido por Vittorio Mussolini .Foi pelas mãos de Federico Fellini que Alberto Sordi teve a sua primeira grande oportunidade em 1952, fazendo o papel principal na comédia Abismo de um Sonho – Lo Sceicco Bianco. Com Giulietta Masina no elenco, Sordi interpretava Fernando Rivoli, um galã-herói de novelas de quadrinhos.Ainda com Fellini, Alberto Sordi , ao som de Nino Rota, compôs um dos cinco personagens-título de Os Boas Vidas- I Vitelloni (1953), jovens de classe média da Romagna mais interessados em viver o momento presente do que em se preocupar com o futuro. Nesse grupo, Sordi foi Alberto, um filhinho-da-mamãe jogador que se vê obrigado a trabalhar para sustentar a mãe quando a irmã foge de casa com um homem casado.



Neste ano de 2004 o último dos moicanos Nino Manfredi também pegou a barca. Foi encontrar-se com o resto dos “compagni” que se foram antes dele, talvez porque sozinho ficou muito chato por aqui. Antes da viagem, no entanto, Nino já havia deixado trabalhos com De Sica (O Juízo Universal, 1962), Dino Risi (Vejo Tudo Nu, com Sylva Koscina, 1969), Ettore Scola (o terrível Feios, Sujos e Malvados, 1976) e o humanístico Nós que nos Amávamos Tanto,1974), Luigi Comencini (Serviço Secreto à Italiana,1968) e Lina Wertmuller ( E Agora Falemos de Homens, 1964). O seu Franco Finali, que paranóica e desesperadamente procura descobrir quem é o amante de sua mulher Marta (Catherine Spaak) em Adultério à Italiana, 1966, de Pasquale Campanile, é um personagem único e inesquecível.



Não dá para parar por aqui. Impossível esquecer de Renato Salvatori em Os Companheiros (1963), de Mario Monicelli, nem não lembrar de Gian Maria Volonté em O Caso Mattei (Francesco Rosi, 1971) , em Um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita (Elio Petri , 1970) e em Sacco e Vanzetti (Giuliano Montaldo, 1971). E de Franco Nero, e de Aldo Puglisi , e Raf Vallone, e Amedeo Nazzari, e Memmo Carotenuto, e Peppino Del Filippo ...Nunca mais haverá uma tribo como essa . Felizes eram os que viam os seus filmes e esperavam pelos que ainda viriam . Como disse Fernando Pessoa, no tempo em que festejavam o dia do seu aniversário, ninguém estava

morto . Hoje, é curtir a lembrança.

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