Críticas


JUSTIÇA

De: MARIA AUGUSTA RAMOS
24.06.2004
Por Carlos Alberto Mattos
CORREDORES SEM SAÍDA

Um filme não é apenas um filme, mas também a maneira como ele se comunica com o público. O título do novo documentário de Maria Augusta Ramos vem todo escrito em letras minúsculas: justiça. A primeira informação que recebemos é de que o filme talvez não se refira ao sistema judiciário, comumente grafado como Justiça, mas a uma acepção mais genérica da palavra. A justiça como categoria abstrata, ou então como substantivo que designa não só a justiça criminal, mas também a justiça social. A grafia pode sugerir, ainda, uma crítica ao sistema judiciário. Como se afirmasse: do jeito que é feita no Brasil, a chamada justiça não merece uma maiúscula.



De fato, não é alheio às intenções da realizadora o desejo de que o filme contribua para as discussões em torno da reforma judiciária brasileira. Intimamente, ela concorda com as opiniões da defensora pública Maria Ignez Kato, uma das personagens do filme, que se opõe à volúpia encarceratória de muitos juízes. “Eles pensam que vão salvar a sociedade”, diz Maria Ignez, numa conversa com seus familiares à mesa do jantar. “Dizem que ninguém é preso nesse país, enquanto os presídios estão aí superlotados”, argumenta.



O filme, vencedor do Festival Vision du Réel (Nyon, Suíça, 2004), mostra o horror das cadeias apinhadas de homens, o drama das visitas familiares sem o menor espaço para privacidade, o coro assustador dos simpatizantes do Comando Vermelho. Situações à beira da explosão, que de alguma maneira já conhecíamos através de filmes como Carandiru e O Prisioneiro da Grade de Ferro. O diferencial aqui é o acesso à intimidade de cinco casos específicos, flagrados no cenário asséptico do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Através deles, o filme tenta construir uma metonímia da sociedade brasileira, onde a Justiça funcionaria como elemento de reafirmação de uma ordem social fundamentalmente injusta.



Dos documentários de Maria Augusta que conheço, este é o que mais se identifica ao “modelo sociológico” (conforme denominação de Jean-Claude Bernardet), na operação de transferência que faz entre o particular e o geral. Tanto Brasília, um Dia em Fevereiro (1995), quanto Desi (Holanda, 2000) e o média Rio, um Dia em Agosto (2003) tratavam de individualidades irredutíveis ou personagens situados num contexto espaço-temporal delimitado. Em justiça, até mesmo pelo que o título comunica, há a tentação de generalizar e apontar sintomas de um quadro que transcende o que é mostrado. Isso é muito bom para estimular debates sociais e reivindicar um “papel” para o filme. Mas a grandeza de justiça vai ser encontrada em outros aspectos.



Antes de mais nada, Maria Augusta desvenda um pequeno mundo solenemente ignorado pela grande maioria dos espectadores. A frieza do ambiente nas salas de audiência e o caráter altamente ritualizado dos procedimentos de interrogatório favorecem o método da diretora, assemelhado ao do cinema direto americano. A câmera comporta-se como um olho neutro, fixo, quase ausente. Mas o uso de várias câmeras permite uma montagem que sublinha os jogos de olhares, as reações contidas, as dissimulações. E sobretudo a rigidez de um dispositivo em que o juiz todo-poderoso e o réu intimidado se confrontam sem qualquer sentido de proporção, ante o silêncio quase total dos demais circunstantes. O diálogo impossível – porque na verdade não buscado – ressalta a impessoalidade dos julgamentos em ritmo industrial. Os longos corredores do tribunal, imersos em sua típica iluminação indistinta, materializam o labirinto sem saída de um sistema penal alienado das condições do país. O que o filme consegue captar desse “teatro” absurdo é simplesmente admirável, lembrando, na estrutura, o documentário Divórcio à Iraniana, um hit de festivais no fim dos anos 1990.



A comparação que tem sido feita entre o método de Maria Augusta Ramos e o do documentarista americano Frederick Wiseman justifica-se apenas na superfície. Enquanto Wiseman centra o foco no funcionamento das instituições, Maria Augusta nos remete a uma dimensão mais humana das personagens. Em justiça, ela aborda cinco réus de furto e porte de drogas, mas escolhe um deles para formar a espinha dorsal do filme. Trata-se do jovem Carlos Eduardo, dono de ficha criminal já robusta, sendo julgado desta vez por ter colidido enquanto dirigia um carro roubado. O filme acompanha as idas e vindas de sua mãe, uma mater dolorosa cheia de força e lágrimas, e da moça apática que espera o segundo filho do casal. A câmera as acompanha até as respectivas casas, à igreja evangélica onde a mãe entra em transe na expectativa de uma vida melhor, ao nascimento do novo bebê.



Da mesma maneira, Maria Augusta visita a intimidade familiar de um juiz e da defensora pública. Nessas cenas – que não mais se filiam ao cinema direto, mas a uma espécie de “realidade encenada” com implícita consciência da presença da câmera –, somos levados não só a presenciar as conversas entre as pessoas, mas também a ver “através” dessas conversas: ver as marcas de classe que configuram o abismo social entre réus e oficiais da justiça.



Esses deslocamentos servem também à constituição de uma imagem da cidade como lugar de tensões, violência e abandono, que acabam desaguando no crime e nos despropósitos do sistema penal. Há, portanto, uma cadeia de significações que são buscadas na estrutura geral do documentário, o que reforça o seu caráter sociológico.



A diretora recusa as entrevistas, não por considerá-las menos “verdadeiras” que as conversas diante da câmera. Ela pretende fornecer informações que não pareçam endereçadas diretamente ao espectador, que não criem identificação ou qualquer empatia especial. As informações devem passar pelo crivo das relações interpessoais, mantendo o público a uma distância que dê espaço à reflexão. Maria Augusta procura o que chama de “presença autêntica”, alinhando-se a uma tendência do documentário europeu contemporâneo.



Para isso, ela compra o risco de uma ou outra cena soar falsa a um espectador viciado no ilusionismo da ficção. Quando Maria Ignez recebe a filha no carro, tenta entabular uma conversa sobre as aulas do dia e a menina responde por monossílabos, a sensação é de que o método fracassou. O mesmo ocorre no almoço em família do juiz Geraldo Prado, quando falha a pretendida construção de uma intimidade caseira. O que estou chamando aqui de realidade encenada exige de seus “atores sociais” um talento para representar a si mesmos que nem todos possuem. Felizmente, tanto Maria Ignez quanto Geraldo possuem o carisma necessário a que não se perca o básico das cenas.



Na interação entre réus e magistrados, surge outra anotação importante de justiça, que é o papel ordenador da linguagem. A princípio, há um fosso gigantesco entre a fala desarticulada dos presos e a oratória empolada dos juízes. Estes “traduzem” os primeiros para os registros do escrivão, convertendo gírias e elipses em prosódia especializada. À medida que o réu se familiariza com o jargão jurídico, passa a usá-lo também, seja para causar boa impressão pessoal, seja para alegar conhecimento das leis. Carlos Eduardo, por exemplo, já é tão experiente que sabe interromper o ditado da juíza para fazer uma correção a seu favor.



O ato de falar aqui não é um evento em si, como nos filmes de Eduardo Coutinho, mas veículo de exercício de poder e de auto-defesa, via precária de acesso a uma verdade que ninguém pode apalpar. Em dado momento, o filme mostra Carlos Eduardo admitindo perante a defensora que havia mentido em juízo. “Eu não ia dizer isso lá”, explica-se, dirigindo em seguida um olhar desconfiado à câmera. Por um momento, a instância do documentário oscila entre a neutralidade cúmplice e o potencial incriminador. É no gume de uma lâmina que justiça monta sua máquina de observação. Maria Augusta Ramos triunfa porque sabe equilibrar-se nesse fio tênue com arte, ética e perícia.





# justiça

Brasil/Holanda, 2003

Direção e roteiro: MARIA AUGUSTA RAMOS

Fotografia: FLÁVIO ZANGRANDI

Som direto: VALÉRIA FERRO

Edição: VIRGÍNIA FLORES, MARIA AUGUSTA RAMOS E JOANA COLLIER

Pesquisa e assistência de direção: PAOLA VIEIRA

Produção: LUIS VIDAL, NIEK KOPPEN, JAN DE RUITER E RENÉE VAN DER GRINTEN

Duração: 100 minutos

Site do filme

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