Críticas


IGUAL A TUDO DE ALLEN

25.08.2004
Por Ricardo Pereira
IGUAL A TUDO DE ALLEN

Woody Allen é um dos poucos cineastas no mundo que consegue a façanha de realizar um filme por ano. Obviamente uma produção tão intensa não se encontra isenta de seus altos e baixos. No entanto quando o assunto é comédia ainda não apareceu quem superasse este nova-iorquino de 68 anos e Igual a tudo na vida, seu título mais recente, é o melhor argumento para justificar tal afirmativa.



No filme há inúmeras referências, explícitas e implícitas, a uma das obrasmáximas de Allen: Annie Hall (que no Brasil virou Noivo Neurótico,Noiva Nervosa). E se o peso da revisitação nunca é um fardo pesado na filmografia do diretor, Igual a tudo na vida recicla esse olhar com um toque de juventude e frescor: o par formado por Woody Allen e Diane Keaton é substituído por Jason Biggs (de "American Pie") e Christina Ricci.



Biggs é um claro alter-ego de Allen, uma espécie de versão jovem do diretor, incorporando seus cacoetes a sua interpretação como o fazia Kenneth Branagh em Celebridades. Tal como o Woody Allen de Annie Hall, Biggs faz um escritor de piadas para comediantes, Jerry Falk, cheio de talento e em ascensão, mas que ainda não conseguiu se realizar no campo afetivo. Até que conhece Amanda, a personagem de Ricci. Ela é bonita e interessante, mas ao mesmo tempo confusa e paranóica. É a relação entre ambos que acompanhamos, com uma Nova York mais iluminada e verdejante do que nunca como pano de fundo. Os substitutos de Allen e Keaton já haviam interpretado um casal romântico em Prozac Nation e confirmam funcionarem bem nesse registro: Jason Biggs embora limitado não compromete, enquanto que Christina Ricci está bem como sempre.



A obra de Woody Allen vem assumindo, à medida que cada filme se vem acrescentar a um "corpus" coerente, quase a dimensão de um filme único que se desdobra em tomos sucessivos, com inteligíveis rimas internas e remissões para vertentes diversas do seu talento. Independentemente do maior ou menor acerto de um filme em particular é da necessidade de uma visão de conjunto que se trata, unificada pela presença obsessiva de uma Nova Iorque física e idealizada e pela capacidade de insistentemente interrogar a sua própria constância. Porque se trata de um autor, na definitiva acepção do conceito, cada novo filme vem, pois, trazer a urgência de uma "ordenação" e a possibilidade de uma revisão.



Assim, filmes anteriormente conotados como meras visitas a universos alheios ganharam com o tempo uma consistência e uma funcionalidade que convém realçar: Interiores(1978), muitas vezes considerado um "pastiche" de Bergman, venceu o teste do tempo e constitui peça fulcral do quebra-cabeças alleniano; Memórias(1980), uma espécie de resposta pessoal ao Oito e Meio de Fellini, transporta para a universalidade da sua descontextualização cultural a essência de um processo criativo em constante ajuste.



Não é de se estranhar que seja nesse mesmo período que a obra de Allen atinge o ápice da sua maturidade. Em Annie Hall(1977) e Manhattan(1979) o cineasta aplicava ao conjunto das suas reconhecíveis paranóias uma imagem de marca, unindo paisagem e música, psicanálise e humor, seriedade e paródia, uma matriz para futuros desenvolvimentos e variações. E se perguntarmos que novidades traz o trigésimo-terceiro filme de Woody Allen, a resposta talvez seja nenhuma, na medida em que digere, embaralha e volta a dar os mesmos dados. Ou todas, se aceitarmos a premissa de que qualquer variação é uma contribuição diferente para o todo.



Os detratores insistirão que se trata apenas de Woody Allen repetindo-se à exaustão, de modo preguiçoso para não correr maiores riscos. Sabemos que uma piada se contada muitas vezes perde a graça mas no caso de Woody Allen a graça não está na piada mas no próprio e na forma como ele nos conta.



Em Igual a tudo na vida Allen reservou para si um papel secundário. Ele é David Dobel, que além de fazer, sem sucesso, a mesma coisa que Jerry, está convencido que, mais dia menos dia, a civilização ocidental vai ter um colapso e é preciso que as pessoas se preparem com armas e kits de sobrevivência. Dobel vai servindo de mentor espiritual de Jerry, embora de forma pouco convincente. A neurose pelo sofrimento judeu, pelo fatalismo do fim do mundo, a crise da meia-idade e as críticas aos psicanalistas são algumas marcas que identificamos em Dobel e que provavelmente também encontramos na vida pessoal do diretor.



Jerry Falk é, para todos os efeitos, um jovem Woody Allen que ouve, questiona e interroga aquilo que o velho Allen lhe diz (na pele de Dobel). Não deixa de ser curioso que ambas as personagens sejam escritores de comédia, ainda por cima depois do regresso de Allen ao tom cômico de seus primeiros filmes, é como se o velho Allen de agora ressuscitasse o novo Allen que deixou no passado. Ora, qual deles é mais personagem? Qual deles fica mais perto daquilo que Allen fez de si mesmo nos filmes ou do que Allen é na realidade? A encenação desse diálogo entre dois "eus" separados por uma vida faz de Anything Else uma das obras mais extraordinariamente íntimas dos últimos tempos.



Mas vale a pena perder um segundo e olhar para Nova York - o eterno palco de Woody Allen. Respira-se modernidade na Nova York de Igual a tudo na vida, mas ao mesmo tempo há uma brisa clássica (propiciada pela trilha sonora) que nos faz mergulhar no passado. É como se coexistissem no mesmo espaço duas Nova York distintas, numa simbiose acolhedora e reconfortante. A Nova York deste filme é clássica porque permanece na sua essência a mesma, e porque uma história de amor é, afinal, atemporal. Mas é, também, uma Nova York profundamente atual e preocupada com as vicissitudes que abalam o nosso tempo. Nesse sentido, David Dobel é o símbolo máximo de uma geração de outro tempo, que vai lidando com dificuldade às ameaças do mundo contemporâneo.



RICARDO PEREIRA é jornalista.

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