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DA BELAIR À BELEZA

10.06.2015
Por Carlos Alberto Mattos
A propósito da trilogia que compõe a Operação Sonia Silk

As aproximações que volta e meia se fazem entre o Cinema Marginal da década de 1970 e o cinema brasileiro independente contemporâneo ganham força com os três filmes da Operação Sonia Silk, em cartaz no Estação Net Rio. Foram três longas-metragens filmados simultaneamente em janeiro de 2012, inspirados no modelo da mítica produtora Belair, de Julio Bressane e Rogério Sganzerla. Em meados dos anos 1970, a Belair realizou seis longas-metragens num período de seis meses, usando orçamentos irrisórios, equipe e elenco em grande parte comuns, economia de escala e muita ousadia.

Os paralelos fazem mais sentido no que diz respeito às estratégias de produção e ao apetite para a experimentação narrativa, já que em matéria de temática passou-se da transgressão para a contemplação. A busca das Belas Formas substituiu a procura do ferimento e da impureza. Da Belair à Beleza, ganhamos e perdemos alguma coisa.

O Uivo da Gaita é um ensaio de filme de amor rodado com poucas palavras e muita sensualidade nas imagens e na construção sonora. Há um casal, formado por Jiddu Pinheiro e Mariana Ximenes, e uma segunda mulher, vivida por Leandra Leal. As duas são amantes e formam uma tríade aparentemente harmoniosa até que uma viagem de navio vai precipitar uma decisão e uma ruptura. O não dito em palavras é compensado pela exuberância das imagens, a coreografia dos corpos e o apelo sensorial da natureza carioca – palco, aliás, dos três filmes.

Tudo é matéria em O Uivo da Gaita. Tudo é prazer tátil: do contato da pele dos atores a imagens icônicas como um salmão aberto e utensílios de cerâmica que se derretem de calor sobre uma mesa. Um aroma de lesbian chic se espalha no ar ao som marcante da trilha musical de Guilherme Vaz. O diretor de O Uivo da Gaita é Bruno Safadi, autor de um documentário sobre a Belair e que já demonstrou grande domínio de estilo em Éden.

O Rio nos Pertence, dirigido por Ricardo Pretti, posiciona-se no gênero do terror psicológico e, dos três filmes, é o mais denso e capaz de oferecer algo mais reconhecível como material dramático. O diretor de fotografia Ivo Lopes Araújo troca as imagens solares e sensuais de O Uivo da Gata por uma textura descorada, meio fantasmática, e enquadramentos que exploram o mistério de um apartamento vazio e paisagens crepusculares. Aqui Leandra Leal faz uma jovem assombrada por pesadelos paranoicos desde que os pais se suicidaram depois de receberem um misterioso postal com a frase que dá título ao filme. Esse é talvez o longa que, embora tenha sido feito há três anos, melhor reflita o estado de espírito de boa parte dos cariocas atualmente: a experiência de uma cidade ameaçadora, cravada de facas, onde o sol não consegue disfarçar um mal-estar coletivo.

Se algo não me escapou, a personagem de Leandra desliza entre duas configurações: Sonia, que conversa com o companheiro em inglês no início do filme, e Marina, que retorna de uma longa fuga para tentar compreender os acontecimentos. Mas nem ela nem nós teremos sucesso nessa busca. Muitas lacunas são deixadas em aberto. Não somos premiados com o conforto lógico do filme de gênero, mas apenas com a sensação do gênero. Como faz O Uivo com o filme de amor, O Rio nos serve os ingredientes do gênero, mas não os combina numa receita pronta.

Finalmente, O Fim de uma Era reúne, em preto e branco fotografado por Lucas Barbi, fragmentos do making off dos dois outros filmes, engravidados por textos em off nas vozes de Helena Ignez (a Sonia Silk de Copacabana Mon Amour), Fernando Eiras, Maria Gladys e Otávio Terceiro. Funciona como um comentário poético sobre todo o projeto na medida em que flagra olhares dos diretores sobre seus atores e momentos da preparação e das filmagens, assim como incorpora os principais procedimentos em pauta na Operação Sonia Silk: a rarefação dos sentidos, a estrutura lacunar, as citações literárias e possíveis referências à biografia dos envolvidos com a Belair. Na verdade, os offs de O Fim de uma Era são argumentos reais ou imaginários de diversos filmes, inclusive hollywoodianos, e soam como uma homenagem à imatéria-prima do cinema, que são as histórias, sobretudo as de amor. Por sinal, num filme dedicado às musas, o elemento recorrente é a canção The Man I Love.

A trilogia deixa patente o que mais interessa hoje a certo cinema brasileiro independente. Não mais o esgar, o choque, a catarse e a paródia, como entre os marginais dos 70, mas a decomposição dos gêneros aliada a um requintadíssimo senso de composição de imagens e sons. Não mais a atitude política de afrontar a direita e a esquerda ao mesmo tempo, mas a atitude política de dizer-se possível e sensível dentro de um contexto conservador e semi-industrial.

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Outros comentários
    4116
  • ivan
    27.06.2015 às 02:46

    O cinema brasileiro feito com pouco dinheiro, sempre merece ser prestigiado e aplaudido! Só faltou apostar em ATORES COM ROSTOS DESCONHECIDOS, os atores globais já tem suas imagens muito utilizadas! Os três longos são geniais, assistam vale apena.