Críticas


DE-LOVELY

03.12.2004
Por Ricardo Soneto
POP PORTER

“Willing to oblige” é uma expressão pouco comum na língua inglesa. Sua melhor tradução para o português seria “se esforçando para agradar”. Ela poderia ter sido usada na esperta carpintaria de palavras para os versos musicais tão apreciada por Cole Porter, assim como também é a forma mais adequada de descrever De-Lovely, a mais recente biografia filmada do compositor americano. Uma pena.



Dirigida por Irwin Winkler, De-Lovely tem a enorme vantagem de ser menos fantasiosa do que a primeira vez em que a vida de Porter foi levada às telas, no filme A Canção Inesquecível (Night & Day – 1945), de Michael Curtiz. Mas perde a oportunidade de revelar melhor a carreira de um dos mais brilhantes artistas do século XX, ao optar por um comportado híbrido de musical e drama que parece não se sentir à vontade em nenhum desses formatos. Um momento que demonstra isso é a seqüência com a música “Be a Clown”, onde nem a dança nem o canto conseguem conter uma sensação de que tudo está sendo muito forçado.



O que acontece com Cole Porter, que estimula essa vontade dos diretores de tentar produzir filmes equivalentes às festas dos anos 20 ou 40, em vez de apenas mostrá-las? Peter Bogdanovich já tinha caído nessa armadilha com o seu musical Amor, Eterno Amor (At Long Last Love - 1975), onde Burt Reynolds e Cybill Shepherd ficavam cantando músicas do compositor entre taças de champanhe e números musicais constrangedores. Pois bem, se De-Lovely não chega a constranger, também não deixa de lembrar, e muito, o filme de Bogdanovich. A tentativa de Winkler de, logo no início, deixar evidente para o espectador que tudo que está sendo mostrado são fantasias musicadas da vida de um idoso moribundo não ajuda a deixar a coisa menos confusa. Mas, pelo menos, podemos descobrir quem é a personagem de Jonathan Pryce (excelente, como sempre). Ele é Gabe, ou Gabriel para os íntimos, o anjo cantado por Porter na peça “Anything Goes” A música “Blow, Gabriel, Blow” é um dos melhores momentos do filme. Uma pena que Pryce só cante por alguns segundos, e aqui chegamos a outro problema: os intérpretes das músicas.



Existe, também, uma necessidade permanente de estabelecer Porter como “atual e moderno” (como se não bastasse ele ser eterno). O projeto de conscientização contra a AIDS de 1990, por exemplo, usou o nome de uma das peças de Cole (“Red, Hot and Blue”), algumas de suas músicas, cantadas por artistas pop da época como U2 ou Neneh Cherry, e o apoio de uma série de videoclipes filmados por diretores importantes. O resultado foi irregular, como se poderia esperar. Pois bem, De-Lovely usa esse recurso dos cantores pop contemporâneos, como para “apresentar” as músicas às novas gerações. E por quê mais seria? Uma jogada de marketing? É claro. Veja o filme. Compre a trilha. Compre o DVD (e acesse o menu com a opção de ver apenas os cantores pop) etc. Essa estratégia de mercado resulta em números musicais frios e (novamente) forçados. É aquele princípio que confunde “moderno” com “contemporâneo”. Existem surpresas? Claro! Alanis Morissette faz uma agradável versão de “Let’s Do It, Let’s Fall in Love” e Natalie Cole canta “Ev’ry Time We Say Goodbye” como quem tem mesmo um orgulhoso Nat King Cole no sangue. Mas artistas que deveriam estar à vontade com esse repertório, como Diana Krall ou o seu marido Elvis Costello, parecem surpreendentemente deslocados no tempo e no espaço. Nada, no entanto, supera a interpretação de Sheryl Crow para “Begin the Beguine”, transformada numa Bossa Nova onde nem o beguine e nem a bossa salvam a pobre (e bela) música de uma cafonice desnecessária e (adivinhem) forçada.



Em A Canção Inesquecível, Cary Grant e Alexis Smith foram escolhidos pelos próprios Cole e Linda Porter. E sobre o casal principal dessa nova biografia, poderiam ter sido aprovados por eles? Bem, Kevin Kline interpreta o compositor de um modo bastante carinhoso e o fato dele não cantar bem jamais deve ser encarado como um problema, afinal ele está imitando o próprio Porter, que possuía uma limitada e divertida voz (que pode ser ouvida cantando “You’re the Top” nos créditos finais). Kline também não é estranho aos musicais. Sua atuação como cantor no mediano (o filme, não a peça) The Pirates of Penzance (1983) é muito boa .



Ashley Judd está bem e faz uma Linda Porter demonstrando o mesmo carinho de Kline pela sua personagem. E “carinho” talvez seja a palavra chave aqui. Winkler evidentemente queria acertar e seu filme deixa claro isso. Mas ao tentar fazer muitas coisas (drama, musical, parada pós-moderna de artistas populares) o diretor parece permanecer sempre indeciso. Ele tenta ser comportado, repetimos, e acaba mesmo é sendo careta. Como se o próprio homossexualismo de Porter (e o lesbianismo de Linda) ainda fossem tabus hoje e não pudessem ser tratados de uma forma menos caricata, como na seqüência de “Love For Sale”.



No fim, os songbooks perfeitos de Cole Porter no cinema ainda permanecem sendo musicais como Meias de Seda (Silk Stockings – 1957), Dá-Me um Beijo (Kiss Me Kate -1949) e Alta Sociedade (High Society – 1956). A biografia definitiva desse gênio da música popular ainda está por ser feita. Mas, apesar das fraquezas, De-Lovely merece ser visto. Porque fala de Cole Porter. Porque possui a música de Cole Porter. E porque, como diria outra dupla de compositores, os irmãos Gershwin, “who can ask for anything more”? Pois é! Quem pode pedir mais? Vamos encher as taças?





# DE-LOVELY - VIDA E AMORES DE COLE PORTER (De-Lovely)

Estados Unidos, 2004

Direção: IRWIN WINKLER

Roteiro: JAY COCKS

Fotografia: TONY PIERCE-ROBERTS

Montagem: JULIE MONROE

Desenho de produção: EVE STEWART

Elenco: KEVIN KLINE, ASHLEY JUDD, JONATHAN PRYCE

Duração: 125 min.

Site oficial em português: clique aqui





Ricardo Soneto é pequisador de música e cantor.

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