Quem saca do mau-humor quando ouve falar em Dogma 95 deve pôr as barbas de molho. O representante do movimento no Festival do Rio não é um mero repetidor das experiências formais de Lars Von Trier e seus seguidores. O rigor das vestes dogmáticas serve bem ao figurino de Nas Suas Mãos, dirigido pela dinamarquesa Annette K. Olesen, e que traça um tête-à-tête com a obra do sueco Ingmar Bergman. Não e só forma, é também conteúdo.
O filme se passa numa espécie de paraíso para os caprichos do dogma: uma prisão feminina. A ação basicamente se desenrola aí, com saídas rápidas para espaços não menos claustrofóbicos, como o apartamento da protagonista ou o consultório de um hospital. Tudo perfeito para a seqüência de cortes secos, closes, luz natural, interpretações realistas e ausência de trilha tão ao gosto dos dogmáticos. A protagonista é Anna (Ann Eleonora Jorgensen, vista em Italiano Para Principiantes), uma estudante de teologia convidada para substituir o capelão do presídio. A missão irá colocar à prova sua fé e compaixão diante de mulheres maltratadas pela vida e desesperançosas.
Os acontecimentos diretamente relacionados a Anna darão o tom do filme e estabelecerão suas referências explícitas ao universo bergmaniano. Como as personagens de No Limar da Vida, Anna está grávida. Se naquele filme Bergman discorria sobre o sentimento feminino diante da iminência da maternidade, aqui a cineasta Olesen acresce um componente dramático moderno à trama. O casal sabe através de um exame de DNA que seu filho tem uma chance de 5 a 10% de nascer com problemas mentais ou defeitos físicos. A angústia dos pais em ter de optar entre o risco e o aborto revela como na Escandinávia contemporânea, à luz da ciência, a fé cede.
Mesmo antes da notícia que estremece o seu relacionamento amoroso - cujo dilema, ainda que não explorado a fundo, poderia estar em qualquer um dos filmes da fase da ilha de Faro de Bergman -, Anna demonstra o ceticismo que norteia sua prática religiosa. Ao ser questionada se acredita ou não que Jesus caminhou sobre as águas, titubeia. A hesitação não é menor diante dos supostos milagres de uma detenta, que exercem menos atração sobre Anna do que a ficha criminal barra pesada da mesma presidiária. No fundo, Anna parece estar aprisionada a ritos em que ninguém mais acredita e dos quais ela mesmo desconfia. A batina não lhe cai bem.
Não é o que ocorre com Annete Olesen em relação ao Dogma. Em seu segundo longa-metragem – o primeiro, Minor Mishaps, venceu o prêmio de melhor filme europeu no Festival de Berlim – Anna extrai dos recursos do Dogma a força de sua dramaturgia. O lusco-fusco das imagens espelha a crise espiritual dos personagens, sobretudo a de Anna. O diálogo com Bergman, apesar das conclusões exageradas do terço final do filme, reaquece discussões presentes nos filmes da primeira fase do Dogma. Mas é mesmo a Bergman que Annete tem mais a dever. O silêncio de Deus diante das grandes questões metafísicas remete Nas Suas Mãos diretamente a Luz de Inverno e a seu pastor conflituado diante de explosões nucleares e suicídios. A seqüência em que Anna desmonta embriagada diante do púlpito é uma versão atualizada daquela em que Gunnar Bjornstrand, solitário numa capela, pergunta: “Senhor, por quê me abandonastes?” A resposta, pelo visto, continua nas mãos de Deus.
#NAS SUAS MÃOS (Forbrydelser)
Dinamarca, 2004
Direção:ANNETTE K. OLESEN
Elenco:ANN ELEONORA JORGENSEN, TRINE DYRHOLM, NICOLAJ KOPERNIKUS, SONJA RICHTER, LARS RANTHE
Duração: 101 min.