Críticas


MOSTRA SP 2004: SPARTAN

De: DAVID MAMET
Com: VAL KILMER, TIA TEXADA, DEREK LUKE
25.10.2004
Por Ricardo Pereira
XEQUE-MATE QUE NÃO IMPRESSIONA

O novo trabalho de David Mamet, Spartan é, assim como seu antecessor , O Assalto, o gênero do filme de ação revisto segundo o "método Mamet": a ação torna-se um prolongamento da reflexão, aplicação prática de uma teoria, análise e verificação do confronto entre um plano e a sua concretização. Provavelmente, é o filme de Mamet que mais segue uma lógica de enxadrista: agir é avançar um peão para libertar uma torre, o mínimo gesto é fruto da ponderação das possibilidades e da previsão das conseqüências.



Num tabuleiro como o de Spartan, onde até o espaço e tempo são entidades abstratas, a metáfora agüenta-se bem - até porque depois há o adversário, que como é costume em Mamet é "todos os outros". Todos os outros, ou seja, o espectador: os movimentos calculados de Mamet são inteiramente definidos em função da sua antecipação das expectativas do espectador, da informação que lhe esconde e do ponto de vista que o obriga a partilhar.



É o tipo de estratégia que o diretor desenvolve desde seu primeiro filme, Jogo de Emoções, e o xeque-mate é sempre garantido. Mas por mais

brilhantes que continuem a ser as elaborações, é um xeque-mate que impressiona cada vez menos: demasiado habituados que estamos a não acreditar em nada do que vemos num filme de Mamet, a reconhecer cada cena e cada conseqüência como um encenação cujo "off" nos é sussurrado, gostaríamos, para variar, de poder acreditar em alguma coisa. Mas bom, a característica de mestre-manipulador está no seu sangue, e o seu cinema depende dela. É pegar ou largar.



O curioso de Spartan é que esta história - investigação de um desaparecimento, possivelmente um rapto, de alguém que descobriremos ser muito importante, mesmo que apenas simbolicamente, nos Estados Unidos -podia ser a do mais banal filme de ação. Aliás, de certa maneira, já vimos esta história ou histórias muito parecidas em filmes onde a ação tem um entendimento mais canônico e é, portanto, uma questão de músculo mais do que de cérebro, de imediatismo mais do que de calculismo.



A personagem central, Scott (Val Kilmer), figura de topo entre os agentes secretos, tem uma missão também ela típica deste tipo de aventuras: descobrir o paradeiro de Laura (Kristen Bell), filha de um alto funcionário da administração norte-americana. Mamet pega essa história e a eleva até a mais estilizada abstração - a tal ponto que, se sabemos quem é a personagem a que nos devemos agarrar e que nos conduz o olhar (a de Val Kilmer), nunca sabemos bem quem são todas as outras, muito menos quem é verdadeiramente o inimigo.



Herdeiro de um gosto pela ambivalência teatral dos comportamentos humanos, mas também de um sentido de espetáculo enraizado na filosofia de Hitchcock, Mamet desenvolve o filme a partir de duas lógicas, transparentes e labirínticas. Em primeiro lugar, as linhas que conduzem Scott a Laura geram um jogo de espelhos em que todas as dúvidas são permitidas; caminhar para a verdade pode ser viver dominado por um logro crescente. Depois, quanto mais a ação avança, mais Scott se descobre empurrado para uma cruel solidão: ele é uma pura emanação, fria e cerebral, de um sofisticado sistema de vigilância, mas está cada vez mais desamparado e vulnerável. Isto, aliás, muito claramente explicado no título do filme e nos diálogos que o explicam, quando alguém diz a Scott que ele funciona como os soldados que o rei Leônidas, de Esparta, enviava aos reinos vizinhos quando queria atacar de forma inesperada, em vez de escolher um batalhão de combate, Leônidas optava por um soldado só. Scott é o espartano de Mamet, isto é, o grão de areia gerado pelo próprio sistema.



Aquilo que começa por ser um fait-divers político transfigura-se numa crônica sobre a prostituição internacional, depois numa crise interna dos próprios serviços secretos, enfim, numa tragédia intimamente familiar. É tudo uma questão de escala(s). Temos uma visão instantânea do espaço visado por Mamet quando, a certa altura, todas as certezas estão postas em causa e Scott é perseguido por Stoddard (William H. Macy), um dos seus pares. Desesperado, de arma na mão, Stoddard grita-lhe que ele não compreendeu nada e que, "lá fora, é a Terceira Guerra Mundial".



Spartan acaba por ser, assim, um objeto de amor/ódio, um filme sobre o estado bélico da grande nação americana, em guerra com os "outros" e, sobretudo, em guerra com as suas raízes e os seus próprios valores. Este é, afinal, um filme americano digno da mais nobre tradição crítica de Hollywood: trata-se de olhar uma certa América mítica a partir do seu interior, sem transigências morais nem subterfúgios moralistas. Mamet reencontra o fulgor do modelo liberal do thriller (Samuel Fuller, Richard Brooks, Alan J. Pakula), ao mesmo tempo que filma o seu Spartan como se tratasse de relançar a eficácia simples e direta da mais pura "série B". Um dia, quando se quiser fazer a história das várias crises da identidade americana durante a administração Bush, será preciso passar por este filme.



#SPARTAN

EUA/Alemanha, 2004

Direção e Roteiro: DAVID MAMET

Elenco:VAL KILMER, TIA TEXADA, DEREK LUKE

Duração: 120 min

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