Tem-se observado, nos textos publicados sobre Cidade de Deus, duas tendências: uma de louvá-lo apenas como manifesto socio-político que abre os olhos das classes média/alta para uma realidade que se joga à sua frente; outra parcela de críticos acusa o filme de não contextualizar a violência mostrada em cena e de privilegiar o espetáculo visual, banalizando seu conteúdo. Poucos parecem lembrar que trata-se de uma adaptação literária, bastante fiel ao espírito da obra original, e que não tem a menor intenção de ser encarado como filme político.
Cidade de Deus, o livro, escrito por Paulo Lins e lançado em 1997, vendeu apenas 12 mil exemplares. Quase ninguém leu, e quem leu na época precisa urgentemente voltar a ele para compreender melhor o filme. Nas 547 páginas de seu livro, Paulo Lins praticamente se limita a observar, com os olhos de quem foi criado na favela, a violência que desfilava à sua frente. Alternando momentos poéticos com outros em que a brutalidade é narrada de forma seca e direta, o livro é um empolgante e contundente romance de aventura, mas está longe, muito longe, de poder ser considerado um tratado antropológico. Paulo Lins não se detêm, por mais do que em alguns breves parágrafos, no contexto político e social que construiu a identidade violenta e desoladora da Cidade de Deus. Se o livro não promove essa contextualização, porque o filme haveria de fazê-lo?
Como adaptação literária, o filme Cidade de Deus é um primor. Fernando Meirelles e o roteirista Bráulio Mantovani conseguiram manter a estrutura do romance mesmo tendo a árdua tarefa de condensar as histórias de dezenas de personagens que se misturam ao longo de mais de 500 páginas. Da epopéia de formato novelesca, com vários núcleos que se alternavam e se interligavam ao longo do relato, optou-se por concentrar o filme nos personagens que dividem o livro em três capítulos (A História de Cabeleira, A História de Bené e A História de Zé Pequeno). Também dividido em três partes, o filme utiliza Buscapé, um personagem apenas secundário do livro, como o narrador e elo de ligação entre as três histórias. Vários personagens do livro não aparecem na tela, inclusive alguns de destaque, como o irmão gay de Cabeleira que opta pela vida de travesti. Outros foram condensados em um só ou tiveram suas características ligeiramente alteradas, garantindo harmonia e fluidez à estrutura narrativa do filme.
Aí entra o mérito do diretor Fernando Meirelles e do fotógrafo César Charlone. Na primeira parte, a aridez da paisagem poeirenta e o ar de inocência que ainda se respirava na recém-construída Cidade de Deus dos anos 60 estão perfeitamente traduzidos na tonalidade sépia da fotografia e nos enquadramentos clássicos. Na segunda parte, a fotografia mais saturada, o belo trabalho de direção de arte e a ótima seleção musical jogam o espectador no universo setentista das calças boca-de-sino, cabelos black power e camisas Hang Ten. A seqüência do confronto no baile, magistralmente filmada, interpretada e editada, é a melhor de todo o filme. O romantismo da época vai sendo deixado de lado com a chegada da cocaína aos negócios dos traficantes - para quem busca mais detalhes sobre o tema, o filme Profissão de Risco (Blow), de Ted Demme, é um ótimo complemento para se entender esse processo. A terceira fase, a do caos provocado pela guerra no início dos anos 80, é ilustrada pela decupagem videoclipada e o uso da câmera não mão, como forma de reforçar a urgência do tema.
Esta distinção quase didática é fundamental para dar coesão a um elaborado roteiro que vai e volta no tempo (dentro dos limites de cada segmento), e que dá ao filme ritmo e aparência de thriller americano. De fato, tecnicamente Cidade de Deus não deixa nada a dever aos filmes de máfia e de gangue que os americanos fazem com absoluta competência (especialmente Scorsese, que parece ter sido a maior fonte de inspiração). E assim como os thrillers hollywoodianos, ele parece mais preocupado em entreter do que em denunciar. O livro de Paulo Lins é mais violento e sujo, enquanto o filme de Meirelles é asséptico, limpinho, e só consegue chocar mesmo na cena em que uma criança de cerca de 10 anos é obrigada pelo traficante a matar um outro menino menor ainda que ele. Esta foi uma opção estética do diretor que, a meu ver, precisa ser respeitada.
Em sua essência, contudo, livro e filme são iguaizinhos: dialogam com um leitor/espectador que se acredita distante, mas vive bem próximo dessa realidade. É esse um dos méritos de ambas as obras: mostrar ao público alienado que, de uma forma ou de outra, essa realidade está ali, bem na esquina do cinema. Que fatores teriam levado ao surgimento dela é papo pra outro filme, outro livro. O assunto está longe de ter sido esgotado. Que venham as teses antropológicas, os filmes engajados, sujos e chocantes. Por hora, Cidade de Deus cumpre muito bem seu papel. E viva a pluralidade estética no cinema nacional.
# CIDADE DE DEUS
BRASIL, 2002
Direção: FERNANDO MEIRELLES
Co-Direção: KATIA LUND
Roteiro: BRÁULIO MANTOVANI
Produção: ANDREA BARATA RIBEIRO e MAURICIO ANDRADE RAMOS
Fotografia: CÉSAR CHARLONE
Montagem: DANIEL REZENDE
Música: ANTÔNIO PINTO e ED CÔRTES
Direção de Arte: TULÉ PEAKE
Oficina de Atores: NÓS DO CINEMA e GUTI FRAGA
Preparação de Atores: FÁTIMA TOLEDO
Elenco: ALEXANDRE RODRIGUES, LEANDRO FIRMINO DA HORA, SEU JORGE, MATHEUS NACHTERGAELE, PHELLIPE HAAGENSEN, JOHATHAN HAAGENSEN, DOUGLAS SILVA, GERO CAMILO
Duração: 130 min.
site: www.cidadededeus.com.br