Críticas


ENTREATOS

De: JOÃO MOREIRA SALLES
25.11.2004
Por Ricardo Cota
DO TORNO AO TRONO

É preciso evitar a tentação. Entreatos, documentário dirigido por João Moreira Salles, candidato a filme mais comentado do ano, não é o “filme do Lula”. Por mais que o então candidato a Presidente domine a cena, com espontaneidade de comediante, é preciso encará-lo, em primeiro lugar, como “o novo filme do João Moreira Salles”, dessa vez com o auxílio imprescindível do fotógrafo, e também documentarista, Walter Carvalho, que estabeleceu, por elos geracionais e nordestinos, uma fina sintonia com o protagonista.



Fiel aos princípios de sua ética documental, João Moreira Salles faz da coerência sua principal arma contra as acusações de oportunismo. Ao filmar o último mês da campanha presidencial, o cineasta não tirou proveito da disputa eleitoral para oferecer ao espectador mais uma visão de bastidores ou mesmo de pura futricagem política. Não se trata de colocar o cinema a serviço da política, mas sim de colocar um político a serviço do cinema.



Entreatos reforça aspectos autorais da obra de João Moreira Salles, obra esta cujo destaque reside na percepção do real através do outro. Já era assim em Notícias de uma Guerra Particular, talvez seu trabalho mais contagiado por recursos recorrentes do jornalismo. Ali, um painel da violência carioca era montado através de depoimentos de protagonistas da guerra não declarada entre policiais e traficantes.



A famosa entrevista com Marcinho VP ganhou notoriedade justamente por dar voz ao indivíduo por trás do traficante. Tal abertura foi confundida como vitimização do fora-da-lei, quando na verdade limitava-se a documentar o histórico do sujeito que a partir do seu contexto fez uma opção à margem, algo que é fato, não ficção.



O esforço por montar uma história das individualidades levou João a realizar seu trabalho mais complexo, embora ainda não o mais denso. A série Futebol, em três episódios, exigiu meses de acompanhamento de personagens do mundo da bola, tão caro ao cineasta, um botafoguense militante. Dividida em três partes, a série acompanhava o dia-a-dia de jovens ansiosos pelo êxito nos gramados, de dois profissionais em ação e de uma estrela aposentada.



O último episódio, sobre Paulo Cezar Caju, ex-craque da Seleção, do Botafogo, do Fluminense e do Paris Saint-Gemain, é o que marca uma mudança significativa na abordagem de João Salles. A dificuldade em entrevistar o jogador não se transforma em empecilho para a realização do filme. Pelo contrário, ela passa a ser aproveitada como um traço importante para compor o perfil do personagem. Paulo Cezar não é só aquele que a gente vê na tela, mas também o que a gente não vê, o que falta a compromissos, o que some com a ex-namorada, o que ninguém sabe dizer onde está. Paulo Cezar é uma impressão.



E é para adensar a linha da impressão que João Moreira chega a Nelson Freire, seu primeiro filme feito para o cinema. As justificativas do realizador para a tela grande reforçam a opção por um estilo documental abstrato, poético. Segundo João, Nelson Freire foi concebido para o cinema porque o verdadeiro protagonista era o som. Na tela pequena, o filme estaria comprimido, diminuído em sua força. Outra definição importante é a de que se trata de um filme sobre o recato. O que João busca captar é o traço de uma personalidade, uma característica essencialmente humana que pode estar presente tanto num ex-jogador, num astro internacional da música erudita ou no candidato a Presidente da República. É a busca do homem por trás do papel que ele, por conta de uma escolha, assumiu.



Entreatos pode ser visto como o anti-Nelson Freire. Do mundo introspectivo e recatado do pianista, João Moreira Salles aterrissou no universo tumultuado, tenso e histriônico do dia-a-dia de um homem público às vésperas da mais importante eleição do país. Os dois filmes, por sinal, fecham uma espécie de pacote sobre as diversas formas de viver a solidão. A certa altura de Entreatos Lula responde à pergunta que estabelece o elo direto com o filme anterior de João Salles: “Você nunca está sozinho. Isso não te incomoda?”. Lula confessa ficar irritado, às vezes, porém reconhece que foi essa a sua escolha.



O desafio de João em Entreatos foi manter a precisão do olhar tendo pela frente um personagem como Lula, que toma a conta da cena o tempo todo e, como todo político videogênico, sabe como atrair a atenção da câmera. Há momentos em que o diretor afasta-se do personagem, como na antológica seqüência final, ratificando um olhar de observação, distanciado. A força desse olhar pode ser observada no filme por contraposição. É só ver o registro desajeitado da filha de Mercadante, responsável pela filmagem do momento em que Lula recebe a notícia do resultado de boca de urna, para sentir que há formas e formas de se manejar uma câmera.



Claro que em se tratando de uma campanha política o distanciamento tem limites. A impossibilidade da solidão coloca Lula ao lado de figuras da cena pública que em um átimo de participação acabam revelando mais sobre suas personalidades do que o próprio candidato. Assim sendo, Entreatos deixa para a história a bonomia de um José de Alencar, a camaradagem de um Suplicy e a seriedade de um Mercadante. Além de sublinhar aspectos que se revelariam mais evidentes depois de terminado o filme, como a sinistrose de um José Dirceu e a paixonite galinácea de um Duda Mendonça.



Não deixa de ser bom ver Lula falando às claras, sem o empacotamento publicitário, sobre sindicalismo e reforma agrária. Um Lula consciente do papel da classe operária na formação política do país, um Lula, que, de certa forma, muitos queriam reencontrar. Na viagem do torno ao trono, Lula mudou muito. Mas há algo que permanece. E é aí que entra o cinema de João Moreira Salles.



# ENTREATOS

Brasil, 2004

Direção: JOÃO MOREIRA SALLES

Produção executiva: MAURICIO ANDRADE RAMOS

Direção de produção: RAQUEL FREIRE ZANGRANDI

Fotografia: WALTER CARVALHO, ABC

Som direto: ALOYSIO COMPASSO, HERON ALENCAR

Duração: 114 minutos

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