Em outra época, o refinado Zhang Yimou talvez jamais se animasse a realizar uma fita de artes marciais, por mais cuidados estéticos que este gênero possua. O experiente diretor de valiosos dramas humanistas como O Sorgo Vermelho, Amor e Sedução e Lanternas Vermelhas deve ter sido persuadido pela repercussão que O Tigre e o Dragão de Ang Lee conseguiu mundialmente, culminando com o Oscar de melhor filme estrangeiro. Deste inegável antecedente se nutre Herói, uma charmosíssima fábula histórica que bateu todos os recordes de bilheteria em seu país de origem e que tardiamente chega ao Brasil.
No começo de Herói, o espectador é informado de que há dois mil anos o território chinês se encontrava dividido em sete reinos. E que o imperador (Daoming Chen) de um deles, Qin, resolveu uni-los para fortalecer seu governo e converter a China em um império inigualável. Para atingir sua meta o derramamento de sangue era inevitável, pois nenhum governante estava disposto a renunciar a sua terra. Em conseqüência, Qin lança toda sua força militar contra os reinos vizinhos. E as mortes não tardam em produzir-se em grande número. Porém é quando - em um gesto de ousadia sem comparação - dois lendários assassinos, o casal formado por Espada Quebrada (Tony Leung) e Neve que Voa (a sempre sugestiva Maggie Cheung), invadem o palácio de Qin com a intenção de assassinar o seu inquilino.
Por alguma razão, Espada Vermelha lhe perdoa a vida ganhando assim o ódio de sua mulher. Há, no entanto, outro formidável lutador de enorme prestígio que poderia liquidar o imperador, Céu (Donnie Yen). Por um tempo nada sucede. Até que finalmente aparece um quarto indivíduo, Sem Nome (Jet Li) que entra no reino de Qin portando provas de haver eliminado os três temíveis assassinos. Sem Nome é levado ante a presença do imperador e aqui é onde o relato cobra vida. A suposta morte de Espada Quebrada, Neve que Voa e Céu é narrada com minúcia de detalhes por Sem Nome. Suas respectivas armas introduzem os flashbacks que servem de esqueleto para o filme: se trata de diferentes versões (contraditórias entre elas) das aventuras de Jet Li. Se visualizam os duelos com cada um deles e o imperador interroga o narrador sem aparentar muito convencimento de que este esteja dizendo a verdade. O tirano tem sua própria teoria a respeito: em sua opinião, Sem Nome não é um herói e sim um vilão porque em cumplicidade com os demais - que ofereceram sua vida por um ideal - encontrou a maneira de infiltrar-se no terreno inimigo e ficar frente a frente com o responsável pelas muitas vítimas que as guerras produziram.
As diferentes versões do que é narrado nos remete necessariamente às andanças de Toshiro Mifune em Rashomon, de Akira Kurosawa; é talvez útil ver à luz deste clássico japonês a estrutura narrativa do filme de Zhang Yimou: Rashomon utiliza os diferentes relatos de um mesmo fato introduzindo em cada um deles diversas subjetividades que inevitavelmente dão "sua" verdade dos fatos; estas versões se inscrevem em um questionamento acerca das verdades unívocas, com uma liberdade que superpõem visões sem optar ao final por nenhuma (por não poder fazê-lo). É nesta liberdade em que se funda o interesse de cada um dos relatos, na utilização do recurso no filme como um todo formal-temático.
Em Herói o recurso se utiliza em sentido contrário: os três relatos não opõem subjetividades e versões que se afirmam como certas para revelar-se contraditórias quando colocadas lado a lado. Sem Nome se apresenta como o portador da verdade, e as sucessivas narrações (duas a seu cargo, outra a cargo do imperador e uma quarta a cargo de Espada Quebrada) evoluem -coisa que nunca acontece em Rashomon - criando esta verdade unívoca, que se completa progressivamente: se trata de relatos que se somam e caminham para uma objetividade e que flertam com ela a todo momento.
Se nos relatos de Kurosawa o narrador se faz presente em sua visão dos fatos - afirmando assim o caráter pessoal da mesma - nos de Zhang Yimou o narrador desaparece e a narração sempre constrói uma pretendida objetividade: Sem Nome, Espada Quebrada e o imperador se perdem em seus relatos, que poderiam entrelaçar-se. Não se procura afirmar com isto que aqueles relatos em que a subjetividade se faz presente são intrinsecamente mais interessantes que aqueles que buscam apagá-la, porém nos tempos cinematográficos que correm sempre é mais emocionante - e refrescante – um relato baseado na surpresa de uma única verdade esquiva revelada no último momento. Mas isto seria talvez como lembrou o crítico Marcelo Janot em seu artigo sobre o filme Bem me quer... Mal me quer, de Maria de Medeiros, o filme que o crítico (no caso eu) gostaria de ter feito e não uma análise propriamente.
#HERÓI (Ying Xiong/Hero)
China/ Hong Kong, 2002
Direção: Zhang Yimou
Roteiro: Feng Li, Bin Wang, Zhang Yimou
Música: Dun Tan
Fotografia: Christopher Doyle
Direção de arte: Tingxiao Huo
Coreografia das lutas: Siu-Tung Ching
Elenco: Jet Li, Tony Leung, Maggie Cheung, Daoming Chen, Donnie Yen
Duração: 96 min.