Críticas


FILME FALADO, UM

De: MANOEL DE OLIVEIRA
Com: LEONOR SILVEIRA, FILIPA DE ALMEIDA, JOHN MALKOVICH, CATHERINE DENEUVE, STEFANIA SANDRELLI, IRENE PAPAS
20.05.2005
Por Carlos Alberto Mattos
VIAGEM AO FIM DA HISTÓRIA

O turismo tende a ser a principal forma de aquisição de conhecimento. Vale dizer também o oposto: que a aquisição de conhecimentos vai tomando cada vez mais a forma de um turismo cultural. Proliferam os cursos-viagem e os programas de intercâmbio. Navega-se na internet em busca de informações. A própria virtualização do ensino amplia mais e mais o espaço físico do aprendizado.



De algum modo, este filme de Manoel de Oliveira fala sobre isso. Fala sobre muitas coisas, aliás. Fala-se pelos cotovelos em Um Filme Falado.



Uma professora de História (Leonor Silveira) tira férias para conhecer e mostrar à filha os lugares a que muito já se referiu em suas preleções, referências incontornáveis da história da civilização ocidental. Ao longo de um cruzeiro de navio, elas saem de Lisboa e desembarcam em Marselha, Nápoles, Atenas, Istambul e Cairo. Visitam Pompéia, a Acrópole, a mesquita de Santa Sofia, as Pirâmides. Com sua pachorra típica, Oliveira se detém sobre cada um desses marcos, como se desfilasse um antigo audiovisual educativo, movido pelas incessantes perguntas da menina e as incansáveis respostas da mãe.



Apenas um detalhe rompe essa modorra na primeira metade do filme: em cada porto sublinha-se a entrada de uma mulher desconhecida na pele de uma atriz famosa – Catherine Deneuve, Stefania Sandrelli, Irene Papas. Nesse acúmulo de expectativas o veterano cineasta português demonstra sua habilidade em produzir interesse a partir do aparentemente banal. Sempre que parece sucumbir à trivialidade, Oliveira está escondendo alguma coisa poderosa na manga.



As surpresas começam a se desdobrar quando o comandante do transatlântico, vivido por um John Malkovich manietado nas regras da etiqueta, recebe as três mulheres misteriosas em sua mesa para jantar. Desenha-se, então, uma versão civilizada de Babel. A compreensão idiomática não chega a anular a profunda diferença entre cada uma dessas maduras representantes da União Européia: a empreendedora francesa, a modelo italiana que não conseguiu transformar beleza em felicidade e a atriz-cantora grega que se orgulha de suas raízes convertidas em museu. Nesse colóquio de alegorias, o comandante John Walesa personifica, naturalmente, o rumo a seguir: o império americano, muito embora o navio siga literalmente para Bombaim.



Pode soar simplório demais analisar o filme por seu viés simbólico, mas não parece oferecer-se outra alternativa. Como não ver no trajeto entre o Tejo e as Índias uma alusão ao percurso das grandes navegações? Para Manoel de Oliveira, ser sofisticado não significa fugir do essencial ao propor uma discussão. Se for preciso regressar até o pecado original, ele o fará sem rodeios. Passo a passo, frase a frase, ele nos conduz como Rosa Maria orienta a pequena Maria Joana (Filipa de Almeida). O resultado é que ora nos sentimos infantilizados, ora agradecemos ao mestre por ser tão claro e honesto em suas intenções.



Esse passeio pela herança cultural e pelas boas maneiras do Ocidente não vai terminar sem ser abalado por uma derradeira surpresa. Algo que sinaliza, literalmente, o fim da História, da esperança e de uma idéia de civilização convenientemente protegida contra o caos. A perversidade de Oliveira (95 anos ao fazer este filme) está viva e rija, alimentada agora pela paranóia contemporânea de quem se vê na posição de alvo.



Está lá também o célebre pessimismo lusitano. Para manifestá-lo, o autor chega a lançar mão do contra-senso. No debate quadrilíngüe do navio, todos parecem capazes de compreender o grego, mas só o comandante entende um pouco do português. A ambigüidade de Manoel de Oliveira no trato com as perdas e os complexos portugueses tem uma nova e brilhante atualização nos dois planos finais de Um Filme Falado. Dali em diante, o silêncio se instala na tela e as idéias passam a viajar em nossa cabeça.



# UM FILME FALADO

Portugal, 2003

Direção e roteiro: MANOEL DE OLIVEIRA

Produção: PAULO BRANCO

Fotografia: EMMANUEL MACHUEL

Montagem: VALÉRIE LOISELEUX

Elenco: LEONOR SILVEIRA, FILIPA DE ALMEIDA, JOHN MALKOVICH, CATHERINE DENEUVE, STEFANIA SANDRELLI, IRENE PAPAS

Duração: 96 minutos

Site do filme: clique aqui



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