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19ª MOSTRA DE CINEMA DE TIRADENTES

02.02.2016
Por Daniel Schenker
Talvez a maior atração da Mostra de Tiradentes resida nos debates. São os momentos em que a inquietação que move essa iniciativa de exceção no atual panorama cultural se manifesta mais claramente.

A Mostra de Cinema de Tiradentes, viabilizada pela Universo Produção (a cargo de Raquel e Fernanda Hallak) chega à 19ª edição mantendo fidelidade ao seu perfil específico voltado para a valorização de um cinema distante do mainstream , de filmes que não seguem a cartilha do mercado, que dificilmente desembarcam no circuito comercial, assinados por diretores iniciantes. Imperam em Tiradentes trabalhos que resultam mais da necessidade de expressão do que de concessões para atrair uma ampla faixa de público.

Na recém-encerrada edição, o homenageado foi o cineasta Andrea Tonacci, que há 10 anos, apresentou, em Tiradentes, Serras da Desordem (2005), alcançando grande repercussão. Serras... foi o filme de abertura dessa última edição, complementada pelas exibições de Blá Blá Blá (1968) e Bang Bang (1970), ambos do diretor.

A homenagem a Tonacci reafirma a tendência da Mostra de Tiradentes (que conta com curadoria de Cleber Eduardo, Francis Vogner dos Reis e Pedro Maciel Guimarães, norteada, esse ano, pela temática Espaços em Conflito) de não perder de vista os trabalhos de diretores e atores veteranos ou dedicados, em especial, ao cinema, independentemente da priorização a filmes de realizadores em começo de carreira. Não por acaso, Paulo Cezar Saraceni, Karim Aïnouz, Selton Mello, Marat Descartes, Dira Paes, Irandhir Santos e Simone Spoladore receberam tributos. A 19ª Mostra abriu espaço para diretores experientes – a maioria, vinculada a um cinema autoral, como Julio Bressane ( Garoto ), Ruy Guerra ( Quase Memória ), Eduardo Coutinho ( Últimas Conversas ), Helena Ignez ( Ralé ), Maria Augusta Ramos ( Futuro Junho ) e Sandra Kogut ( Campo Grande ).

Parte competitiva da Mostra, a Aurora, destinada a filmes de diretores iniciantes, consagrou Jovens Infelizes ou um Homem que Grita não é um Urso que Dança , de Thiago B. Mendonça – decisão do Júri da Crítica (formado por Angela Prysthon, Arthur Autran, Carlos Alberto Mattos, Marcelo Ikeda e Paulo Henrique Silva), que escolheu ainda o curta-metragem Noite Escura de São Nunca , de Samuel Lobo. O Júri Jovem, composto por universitários, premiou Tropykaos , de Daniel Lisboa, como melhor longa. E Geraldinos , de Pedro Asbeg e Renato Martins, ganhou o prêmio do Júri Popular.

Entre os filmes da Aurora, destaque para Filme de Aborto , de Lincoln Péricles, que se vale de uma série de recursos de estranhamento (que podem remeter a Bertolt Brecht), como inversão de papéis sexuais (os homens, ao invés das mulheres, engravidam), inclusão de canções alemãs, citação inusitada a Charles Chaplin e proposital desconexão entre fala e imagem para abordar a jornada de uma jovem de classe média baixa que trabalha como atendente de telemarketing. Borrando as fronteiras entre documentário e ficção, o diretor extrai bons momentos de atuação de Talita Araújo. Banco Imobiliário , de Miguel Antunes Ramos, também traz à tona a questão da encenação ao expor a showificação dos empreendimentos imobiliários e o consequente descompasso entre o projeto ilusório (realçado por maquetes detalhadas e corretores que vestem personagens para convencer os clientes) e a realidade.

Imagens do corpo em agonia marcaram filmes da Mostra Transições – casos de A Noite Escura da Alma , de Henrique Dantas, que evoca, por meio de um misto de depoimentos e performances, as torturas sofridas durante a ditadura militar; Clarisse ou Alguma Coisa sobre Nós Dois , de Petrus Cariry coloca o público diante da via-crúcis de uma mulher insatisfeita no casamento, que descortina um passado trágico no contato com o pai; e Planeta Escarlate , de Dellani Lima e Jonnata Doll, é centrado num personagem passional, desestabilizado, catártico, extremado, kamikaze e ultraromântico, que tenta superar o passado junkie e recomeçar ao lado da namorada.

Entre os curtas, Levante , de Jader Chahine e João Paulo Bocchi, Entre Imagens – Intervalos , de André Fratti Costa e Reinaldo Cardenuto, e A Vez de Matar, a Vez de Morrer , de Giovani Barros, evidenciaram uma tensão entre procedimentos de ocultação e a impossibilidade efetiva de ocultação. No primeiro, ambientado numa escola, a imagem de uma funcionária é suprimida na cena em que contrata um segurança, mas ao longo do filme fica patente que não há como esconder nada, na medida em que existem câmeras espalhadas por todos os lugares – inclusive, no banheiro. No segundo, os diretores focam num personagem relegado à clandestinidade durante a ditadura – o artista Antonio Benetazzo –, que, porém, rompeu com essa condição ao retornar para São Paulo. No terceiro, o cineasta se debruça sobre meio notadamente masculino (funcionários de um posto de gasolina em vilarejo do interior), no qual a homossexualidade é vivenciada de maneira oculta – até o explosivo desenlace.

Cabe chamar atenção para outros curtas, como Eclipse Solar , de Rodrigo de Oliveira (premiado pelo júri do Canal Brasil), Madrepérola , de Deise Hauenstein (vencedor do prêmio do Júri Popular), Melancia , de Lírio Ferreira, e Quintal , de André Novais de Oliveira, que vem sendo elogiado em festivais. Encerrando a edição, o longa Para a minha Amada Morta , de Aly Muritiba, produção premiada no Festival de Brasília.

Mas talvez a maior atração da Mostra de Tiradentes não resida na exibição de filmes, e sim nos debates sobre eles – e nos que ambicionam um olhar mais abrangente sobre o cinema brasileiro contemporâneo. São os momentos em que a inquietação que move essa iniciativa de exceção no atual panorama cultural se manifesta mais claramente.

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