Dando prosseguimento a uma obra marcada pelo desconforto e desencanto com o país, Sérgio Bianchi polemiza, uma vez mais, com seu novo filme Quanto Vale ou é por Quilo?, radicalizando na agressão proposta por sua abordagem audiovisual de algumas de nossas mazelas — aqui uma visão nada positiva da solidariedade institucionalizada de uma (e de muitas outras) ONG cujo objetivo maior, disfarçado de assistencialismo, é o assalto ao dinheiro público. Se num filme anterior, A Causa Secreta (1994), o que se apontava era exatamente o fim da solidariedade, Quanto Vale chega ao fundo de um interminável poço onde a possibilidade de solidariedade já não existe mais, transformada em mercadoria rentável no jogo propositadamente confuso entre o inescrupuloso acesso a recursos públicos e a falta de controle social dos mesmos.
Construindo uma narrativa não linear que superpõe diferentes tempos e espaços, Bianchi tece uma trama que mistura o passado no presente e amplia o sentido histórico de uma teleologia de causa e efeito que junta o Brasil da segunda metade do século XVIII aos dias atuais. Assim como A Causa Secreta, este também é inspirado na ficção de Machado de Assis (o magnífico conto Pai Contra Mãe, publicado em Relíquias da Casa Velha, 1906) e em diversos documentos encontrados no Arquivo Nacional. Uma vez mais, ficção se mistura com documentário; uma vez mais acaba sendo mais produtivo ver os filmes de ficção de Bianchi como documentários ou um documentário como Mato Eles? (1982) como obra de ficção.
Realizado com muito cuidado em seus valores de produção (fotografia, reconstrução de época, cenografia, locações e figurinos, elenco, uso do som e da música), Quanto Vale começa como um tradicional filme histórico onde, à noite numa floresta, um grupo de homens a cavalo e a pé leva um escravo preso, sob protesto de sua dona, Joana (Zezé Motta), ex-escrava alforriada. Num processo legal, Joana perde seu escravo para um senhor branco e ainda é condenada a lhe pagar uma indenização por ofensas morais e raciais. Alguns escravos de Joana posam frontalmente para a improvável fotografia que o filme também encena. Joana se ajeita, bem no meio deles, numa posição de destaque e poder – e a cena, que começa colorida, em movimento, termina num tom monocromático, fixo, de foto de época, mais um documento da memória que se narra e que desaparece sob o som áspero do que parece ser um chicote que açoita a trilha sonora. O episódio, como outros ao longo do filme, é a encenação de um fato verdadeiro conforme certificam os títulos que surgem na tela, sob fundo preto, indicando o ano de 1799, a origem e a localização do documento: Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, caixa 490. Uma voz em off, típica de um padrão documental-histórico, narra o que está acontecendo, reconstruindo uma memória para o espectador familiarizado com esse tipo de encenação, preâmbulo simultâneo aos créditos do filme.
Como num documentário também tradicional, somos apresentados a alguns instrumentos de tortura ou, de acordo com o ponto de vista, disciplinadores de escravos insurgentes, como o tronco ou a máscara de flandres, iluminados num fundo preto, ao som de uma respiração ofegante e uma batida abafada, regular e repetitiva, que também pontua a trilha sonora do filme em outros momentos. O pesadelo dessa memória ancestral parece sufocar a personagem negra Arminda (Ana Carbatti) e traz a narrativa para o presente – sobre a laje de uma casa numa favela, As Rosas não Falam, de Cartola, sublinha a comemoração dos 80 anos de uma senhora negra. Um movimento de panorâmica ascendente mostra a geografia do morro que também vai perdendo a cor e transforma-se num preto e branco estiloso, onde diversos rostos anônimos de pobres favelados ilustram mais um filme-ensaio institucional de uma campanha intitulada Sorriso de Criança, cujos donativos, conclama o sofisticado anúncio, podem ser feitos por um 0800 qualquer.
A imagem engana, o cinema trapaceia, manipula, e o espectador precisa ficar atento. Uma vez mais Bianchi constrói, de forma brilhante, um cinema que projeta um espectador ativo, solicitado a fazer sentido de justaposições temporais, espaciais, estilos conflitantes, imagens e sons quase sempre enganosos. A repetição dos mesmos atores em diferentes épocas ajuda no processo de distensão temporal que o filme vai (des)amarrando, mas essa é apenas uma entre muitas estratégias retóricas trabalhadas pelo diretor. De novo a ironia transforma-se em faca de dois gumes, onde, num momento, a surpresa de certas situações leva a um riso nervoso, logo transformado em reflexão. A atenção é exigida a detalhes como o nome de uma empresa de ônibus que aparece de relance, a Auto Viação Brasil Luxo, ou mesmo nos diversos nomes pomposos e marqueteiros dos programas e instituições que disputam verbas governamentais com a mercantilização da pobreza, como a Consciência.Org – O Portal da Cidadania ou a transnacional (por que não?) Philantropic Partners, da Filadélfia, esta diversificando seus interesses no interior do país, recuperando mendigos drogados num ambiente rural e bucólico.
Depoimentos diretos para a câmera, dados estatísticos anunciados pela voz off e reiterados por títulos na tela, slogans variados, linguagem publicitária, música, uma certa histeria interpretativa da personagem de D. Mônica (Cláudia Melo), que busca vencer com o social — ela, que nasceu com a vocação de ajudar as pessoas — vão compondo uma teia onde nada parece escapar ao olhar crítico desse cinema. A mesma empresa que explora a solidariedade também discrimina seus funcionários subalternos com uma entrada de serviço diferenciada. A socialite consciente justifica suas ações filantrópicas como forma de reparar as nossas dívidas desta e de outras vidas, reiterando a amplitude sócio-histórica existente na narrativa.
Denunciada a manipulação das imagens desde o início, como em Mato Eles?, o filme volta-se contra si mesmo e a própria realização não fica de fora do circuito crítico por ele mesmo criado. Em mais de um momento, vemos uma equipe filmando e registrando imagens que são mostradas em seguida, numa continuidade em sintonia com o próprio filme. Numa dessas seqüências documentais, num asilo de idosos abandonados, uma velhinha se recusa a ter sua imagem filmada, cobre defensivamente seu rosto e manda a equipe para a puta que pariu, encher o saco de outros. Bianchi também destrói a mania documental possibilitada hoje pelas câmeras digitais numa seqüência impressionante onde outra benemérita registra uma espécie de ritual de exorcismo com mendigos. A imagem que se vê, em seguida, é a do vídeo, granulada, editada de forma caótica, com o som de vômitos ocupando toda a faixa sonora, imagem esta feita pela madame.
Ao tratar dessa maneira do mercado da solidariedade, do assistencialismo e voluntarismo, da disputa competitiva pela pobreza, da filantropia marota da inclusão digital que superfatura na compra de computadores de terceira linha e ainda se utiliza de funcionários pobres para abrir contas paralelas, “laranjas”, da corrupção generalizada no assalto ao dinheiro público, entre outras questões complexas e urgentes, Bianchi realiza mais um filme que incomoda e questiona o audiovisual bem intencionado e o espectador em nossa ilusão narcisista de compaixão humanista, sem qualquer traço de auto-comiseração. E chama atenção, de forma contundente, para as conseqüências sociais e políticas da falência do Estado em suas responsabilidades e no papel insubstituível que lhe cabe na retomada da promoção de políticas públicas de caráter universal.
# QUANTO VALE OU É POR QUILO?
Brasil, 2005
Direção: SÉRGIO BIANCHI
Roteiro: SÉRGIO BIANCHI, EDUARDO BENAIM, NEWTON CANITTO
Fotografia: MARCELO COPANNI
Montagem: PAULO SACRAMENTO
Edição de som: RICARDO REIS
Direção de arte: RENATA TESSARI, JUSSARA PERUSSOLO, VERA HAMBURGUER
Figurinos: CAROL LEE, DAVID PARIZOTTI, MARISA GUIMARÃES
Locuções: MILTON GONÇALVES, VALÉRIA GRILLO, JORGE HELAL
Elenco: ANA CARBATTI, CLÁUDIA MELLO, HÉRSON CAPRI, CACO CIOCLER, ANA LUCIA TORRE, SILVIO GUINDANE, MYRIAM PIRES, LENA ROQUE
Duração: 104 minutos
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