Só Sergio Bianchi - além de Vinicius & Diogo Mainardi - fariam tal coisa. Vinicius e Diogo, além de não serem muito benquistos pelas esquerdas, não estão com planos cinematográficos em conjunto. Não sei o que as esquerdas acham de Bianchi, mas para dizer o que não se diz sobre ONGs e assistencialismo, é ele que resta.
Quanto vale ou é por quilo? lança um olhar crítico pouco comum sobre as ONGs assistencialistas e sobre a relação entre a sociedade burguesa e os excluídos de um modo geral. Tal coisa já havia sido feito em filmes admiráveis, como Cronicamente Inviável, de Bianchi, e 16-0-60 ou Mater Dei, dos irmãos Mainardi. O filme de Sergio Bianchi vomita com galhardia – e literalmente até – sobre o politicamente correto. Este é um alimento de que o cinema brasileiro está precisando em doses maciças.
Por isso não deixa de ser estranha a opção narrativa abraçada por um filme em muitos outros aspectos notável. A partir do que construiu de base para seu filme (ao lado de roteiristas como o crítico Newton Cannito, que não aparece nos créditos), o caminho natural de Bianchi seria potencializar o seu discurso.
É claro que “enquadrar” o filme seria não apenas a pior das opções mas até mesmo uma traição aos princípios nele expostos. Ainda assim, Quanto vale pede visivelmente um tratamento formal que se oponha, tanto quanto o texto com que trabalha, a um modelo hegemônico de cinema. Um caso clássico em que o conteúdo é regido pela forma. No andar de baixo, Quanto vale ou é por quilo? procura mostrar que o cinema não é tão melhor quanto mais se parecer com teledramaturgia barata. Na superfície, porém, não é bem isso o que aparece.
Bianchi mergulha sobre o grande negócio do assistencialismo e mune-se de dados científicos para falar das diversas formas de escravidão que persistem no país. A aparência de amparar uma criança, pode ser um negócio capaz de render dez mil dólares por cada criança supostamente amparada. Cada uma dessas crianças é capaz de gerar cinco bons empregos. Se trafegasse entre os programas assistenciais propostos pelo governo ou pelo legislativo, a festa seria ainda maior.
Um filme assim em nada se parece com a novela das sete. Nem com todos os filmes que gostariam de se parecer com ela e fazem os mais patéticos esforços para isso. Todas essas coisas juntas já deveriam lhe render uma condecoração. Mas ao não lidar de maneira consistente com uma estética que ampare o seu discurso, Bianchi acaba colaborando para enfraquecê-lo. E enfraquecê-lo não apenas como um produto de mercado, mas também e principalmente como um esforço conseqüente de resistência a modelos hegemônicos de construção ideológica. Se a própria novela das sete fosse obrigada a parodiar esse tema, provavelmente é por aí que caminharia.
A um filme político isso pode e deve ser cobrado. Como Hal, o computador de 2001, lembraria exatamente ao seu criador, missões assim são importantes demais para serem comprometidas. Desnudar a hipocrisia assistencialista que enriquece os ricos às custas da sedimentação da miséria é um propósito de mérito e coragem. Em muitos momentos de Quanto vale ou é por quilo? eles se completam admiravelmente. No vômito coletivo, na inauguração do projeto de inclusão digital, no diálogo dos empresários que a precede, nas dúvidas que atormentam os que ainda sofrem o embate ético.
É quando o spot de TV parece uma paródia da paródia, ou nos momentos em que o filme não consegue resolver situações bem pontuais (as citações ao Arquivo Nacional, por exemplo), que ele começa a parecer uma caricatura de si mesmo – e inadvertidamente fazer o jogo do modelo que está empenhado com combater. Quanto vale ou é por quilo? chama para o combate por uma causa justa. Em meio à luta é que revela o estreito campo em que se dá esse combate - o que chama por um tipo de rigor que não se poderia exigir, por exemplo, de uma simples comédia de costumes.
# QUANTO VALE OU É POR QUILO?
Brasil, 2005
Roteiro: SÉRGIO BIANCHI, EDUARDO BENAIM, NEWTON CANITTO
Fotografia: MARCELO COPANNI
Montagem: PAULO SACRAMENTO
Edição de som: RICARDO REIS
Direção de arte: RENATA TESSARI, JUSSARA PERUSSOLO, VERA HAMBURGUER
Figurinos: CAROL LEE, DAVID PARIZOTTI, MARISA GUIMARÃES
Locuções: MILTON GONÇALVES, VALÉRIA GRILLO, JORGE HELAL
Elenco: ANA CARBATTI, CLÁUDIA MELLO, HÉRSON CAPRI, CACO CIOCLER, ANA LUCIA TORRE, SILVIO GUINDANE, MYRIAM PIRES, LENA ROQUE
Duração: 104 minutos
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