A mãe chega de carro em casa com o rosto coberto de ataduras, e os filhos gêmeos Lukas e Elias, que brincavam no campo, correm para vê-la. “Dispam-se”, diz ela, ordenando que eles tomem banho. A legendagem em português da produção austríaca BOA NOITE, MAMÃE foi feita, segundo informou a distribuidora, com base no roteiro traduzido para o inglês, e não no original em alemão. Como em inglês a conjugação do modo imperativo é a mesma para o singular e o plural, não se sabe se ela estaria de fato dizendo “Dispam-se” ou então “Dispa-se”, dirigindo-se a apenas um dos filhos.
Essa observação é importante para a análise do filme, pois desde o início fica claro que ela está se dirigindo exclusivamente a Elias, se recusando a falar com Lukas. Caso no original em alemão o diálogo aconteça no plural, como a legendagem brasileira sugere nesta e em outras cenas, o roteiro fica parecendo que foi estruturado em forma de pegadinha, unicamente para iludir o espectador em relação a uma suposta surpresa que só seria revelada explicitamente mais adiante.
O fato é que essa surpresa é facilmente identificável pelo espectador mais atento, bastando observar, além da mãe, o comportamento e o jeito de falar dos gêmeos. Tirando-se o foco do suposto mistério envolvendo os meninos, é interessante observar como os diretores/roteiristas Severin Fiala e Veronika Franz lidam com o aspecto psicanalítico da trama, no que a ligação uterina dos gêmeos e a dificuldade de reconhecer a mãe após um evento traumático pode desencadear no dia a dia da família.
No caso de “Boa noite, mamãe”, isso é explorado recorrendo-se aos códigos comuns aos filmes de suspense: a ambientação pouco acolhedora da mansão isolada da civilização, asséptica e silenciosa, o mistério envolvendo elementos que flertam com o sobrenatural, e a progressiva esquizofrenia que gera cenas de tensão e violência. Violência que, por sinal, descamba para um ritual sádico que parece exagerado e gratuito, destoando do resto da narrativa. Entretanto, tudo é muito bem filmado “em glorioso 35mm”, como os realizadores revelam, com orgulho, nos créditos finais. Se não chega a ser um grande filme, trata-se de uma auspiciosa estreia em longa-metragem de ficção dos dois diretores da terra do mestre Michael Haneke.
(publicado originalmente no jornal O Globo em 09.03.2016)
PS. Foi esclarecido que na versão original em alemão a mãe se dirige ao(s) filho(s) no singular - um erro grave, portanto, da legendagem brasileira, que deturpou a obra original.